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    Argentina, 1985
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Argentina, 1985

    A coragem de falar contra o terror

    por Katiúscia Vianna

    Em 2010, a Argentina levou o Oscar de melhor filme internacional (chamado ainda de estrangeiro naquela época) com O Segredo dos Seus Olhos — um drama impactante que ganhou uma versão hollywoodiana esquecível anos depois. Hoje, o país de Maradona volta na luta pela estatueta dourada com outro longa estrelado por Ricardo Darín: trata-se de Argentina, 1985; com tema delicado sobre a história de sua nação, que vem ganhando força ao ser exibido em diversos festivais pelo mundo.

    Qual é a história de Argentina, 1985?

    O filme conta a história real de Julio Strassera (Ricardo Darín), promotor responsável por acusar nove militares argentinos por crimes contra a humanidade durante a ditadura militar na Argentina, ocorrida entre 1976 e 1983. Diante de um país com um governo ainda frágil diante de tal ameaça, ele relutantemente aceita tal missão, mas encontra dificuldades para construir seu time legal. Surge então Luís Moreno Ocampo (Peter Lanzani), um promotor sem experiência que veio justamente de uma família militar.

    Formando uma dupla improvável, Strassera e Ocampo convocam um grupo de jovens estudantes para colher mais de 700 depoimentos sobre pessoas torturadas, mortas ou desaparecidas durante a ditadura. Em 1985, como o título aponta, começa o Julgamento das Juntas; que chama a atenção do povo e da mídia internacional. Só que ambos os protagonistas se encontram sofrendo pressões políticas e ameaças de morte.

    A direção é responsabilidade de Santiago Mitre — que tinha apenas cinco anos quando surgiram os acontecimentos do filme. Essa não é a primeira vez que ele trabalha com Ricardo Darín; na realidade, Argentina, 1985 é a quarta parceria desta dupla, após títulos como o recente A Cordilheira.

    Santiago Mitre constrói narrativa dinâmica em Argentina, 1985

    De um ponto de vista geral, Argentina, 1985 não é um filme que tenta reinventar a roda. Sua fórmula é algo básico que já vimos muito em filmes de tribunal de Hollywood. Porém, isso não significa que se trata de um longa ruim. Pelo contrário, as grandes mentes sabem usar os pontos fortes de certas fórmulas para seguir seu objetivo máximo: neste caso, contar a história de um dos momentos mais tristes da história da Argentina.

    Falar sobre ditadura militar num filme de quase duas horas e meia poderia ser uma experiência pesada, daquelas difíceis de engolir. E, realmente, não é fácil ouvir os depoimentos das vítimas — principalmente a jornada de Adriana Calvo de Laborde (Laura Paredes), sequestrada e torturada enquanto estava grávida, dando a luz para sua filha ainda sob o controle dos militares. Afinal, quem não se sentiria mal diante do pior lado da humanidade?

    Felizmente, Santiago Mitre sabe dosar os momentos de emoção, mostrando a seriedade da situação, mas ainda tem espaço para um “lado mais leve” da narrativa. São pequenos toques de humor, seja com o protagonista enviando seu filho mais jovem para espiar a irmã que namora um cara suspeito; ou com a montagem divertida de seleção dos jovens estudantes que farão parte da equipe de acusação. De forma alguma, isso tira a necessidade de falar sobre um assunto tão brutal, mas, em termos de experiência cinematográfica, ajuda o espectador a ficar mais conectado com os personagens da tela.

    Além disso, Mitre consegue trazer dinamismo em ambientes pequenos e fechados, como os escritórios e o próprio tribunal; tendo a difícil missão de lidar com tantos personagens, investindo em certos momentos de destaque para coadjuvantes. Também é importante ver como seu foco está na corajosa equipe de acusação. Ele poderia muito bem exagerar e retratar os nove militares poderosos como vilões caricatos, mas, sinceramente, eles não têm (nem merecem) muito tempo de tela. O maior detalhe fica em como um deles ignora todo o processo, lendo uma bíblia durante o momento mais importante do julgamento. Preciso desenhar a ironia? Espero que não.

    Ricardo Darín lidera um elenco incrível em Argentina, 1985

    Falar bem da atuação de Ricardo Darín já virou um clichê a essa altura do campeonato, afinal não é à toa que ele seja um dos nomes mais famosos da Argentina. Mesmo assim, temos que celebrar sua performance contida, mas ainda cheia de emoção de um Strassera cercado por pressões de todos os lados. Se no tribunal, ele é duro e imponente, também vemos seu lado amoroso com a família — com destaque para o relacionamento com a esposa, Silvia (Alejandra Flechner) e o filho caçula aprendiz de espião. Mas ainda tem espaço para alguma irreverência, já que o apelido de seu personagem é Louco.

    Ele ainda faz uma boa dupla com Peter Lanzani, que traz um lado mais jovem e idealista para a situação. Mesmo assim, seu Ocampo também se vê pressionado pela família, inclusive sua própria mãe, que apoia os militares. E você achando que sua discussão política no whatsapp da família era algo moderno. Que nada, essas discussões já aconteciam décadas atrás, infelizmente…

    Outras atuações interessantes são de amigos de Strassera. Um deles é seu mentor de saúde frágil, Alberto (Norman Briski), que traz palavras de sabedoria. Outro é o colega diretor teatral, Carlos Somigliana (Claudio Da Passano), com quem faz uma dobradinha impagável durante todo o processo. Por sua vez, o elenco jovem aproveita seus breves momentos para construir a profundidade de seus personagens, criando um grupo talentoso capaz de apoiar seus protagonistas.

    Vale a pena ver Argentina, 1985?

    Para o espectador comum, Argentina, 1985 já é uma experiência interessante e quase didática sobre um dos momentos mais sombrios de sua nação. Mas é impossível não ter uma camada extra de reconhecimento quando se trata dos brasileiros. Falamos tanto que somos inimigos no futebol, mas Argentina e Brasil compartilham de muitas semelhanças, inclusive sobre os capítulos mais brutais de sua história.

    Ver os depoimentos das vítimas, o sofrimento de familiares e a busca por justiça que parece nunca chegar? Toca forte o coração de uma pessoa que sabe como isso já aconteceu no próprio país que chama de lar. E o pior: ainda tem gente que defende os tempos da ditadura. Só que o longa também sabe diferenciar muito bem como uma suposta defesa pela segurança não é a mesma coisa que brutalidade contra indefesos.

    Argentina, 1985 mostra pessoas com tal ideologia mais conservadora, mas surge com uma visão otimista que a empatia é mais forte que uma opinião política, quando a informação e justiça cumprem seus deveres com a verdade. Observando e vivendo num país tão dividido como o de hoje, não sei se compartilho dessa esperança, mas gosto de imaginar que o futuro será mais otimista também. Talvez o Brasil deveria adotar o lema da Argentina, tão exaltado no longa, para aprender com seus erros: NUNCA MAIS.

    *O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2022.

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