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    Pacarrete
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Pacarrete

    Adorável ranzinza

    por Francisco Russo

    Que grande atriz é Marcélia Cartaxo! Não que tal afirmação seja propriamente uma novidade, vide seu sucesso já na estreia no cinema, no distante A Hora da Estrela (1985), quando de cara faturou o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim. Mais de três décadas depois, e infelizmente com poucos papéis de tanto destaque nas telonas desde então, eis que Marcélia ressurge em seu esplendor como Pacarrete, personagem tão fascinante quanto particular. Fosse qualquer outra atriz, não haveria como reprisar com exatidão o que é feito por ela.

    Não haveria porque Marcélia se apossa da personagem de tal forma que lhe dá uma identidade absolutamente intrínseca a si mesma, seja ao modular a voz em um timbre alto e áspero até os momentos em que fraqueja por puro pânico. Sua Pacarrete é de uma raiva incontida e explosiva que diverte pelo seu lado naturalmente exagerado e um tanto quanto cartunesco, tanto no que é dito quanto em gestos largos. Ao mesmo tempo, consegue ser adorável quando está ao lado do amigo Miguel, com quem troca flertes descaradamente, e ainda espirituosa ao lidar com inconvenientes, como na hilária sequência em que é abordada por um bêbado. Tudo isto sempre se impondo em cena, em um contraste com seu corpo franzino que é, também, explorado na narrativa devido à sua história como bailarina.

    Ao longo de 97 minutos, Marcélia passa por estas e outras transformações de forma a construir uma personagem única e inesquecível, que desde já entra para a coletânea de grandes mulheres do cinema brasileiro. Mas não é só. Ainda em relação ao elenco, o filme conta com o auxílio luxuoso de João Miguel, de uma simpatia cativante, e ainda Soia Lira como a empregada Maria, que vive (quase) sempre às turras com Pacarrete. O trio, e ainda Zezita Matos como a irmã Chiquinha, formam um núcleo riquíssimo de termos, expressões e variações de dinâmica, ao ponto de entreter, surpreender e emocionar. Se Pacarrete é capaz de fazer rir com gosto, pode também arrancar uma lágrima - e a delicadeza de tal alternância é mérito de outro vértice desta ópera tipicamente cearense: o diretor Allan Deberton.

    Além da grande atuação de sua protagonista, chama a atenção como tudo ao seu redor é tão bem construído de forma a permitir seu brilho maior. Com figurinos que se adequam à realidade retratada e também às diferenças comportamentais entre Pacarrete e os demais moradores da cidade, o filme ainda conta com uma direção de arte deslumbrante e cenários que ajudam a dar leveza à história, seja pela simplicidade ou mesmo pelas cores. Vale também ressaltar as mudanças de iluminação no decorrer da narrativa, especialmente dentro da casa da protagonista, que tão bem ressaltam seu estado de espírito e ainda a trilha sonora tipicamente burlesca, que acompanha o longa-metragem. Não há excessos, o que por si só é uma façanha e tanto.

    De um histrionismo delicioso, Pacarrete é daqueles filmes que dá gosto de assistir. Seja pelos diálogos inspirados, pelo elenco afinado, por uma Marcélia Cartaxo soberba ou mesmo pela junção tão orgânica de todas estas características, de forma que cada elemento brilhe simplesmente por funcionar tão bem dentro desta narrativa. Ainda assim, Deberton guarda alguns trunfos na manga, especialmente na habilidosa inserção da canção "We Don't Need Another Hero", de Tina Turner, com direito a mensagem implícita à narrativa, ou ainda no contundente desfecho, que tão bem reflete a situação da arte no Brasil atual. Belíssimo filme, de uma potência impressionante, que pulsa no coração e talento de sua protagonista.

    Filme visto no 47º Festival de Gramado, em agosto de 2019.

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