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    La Gomera - A Ilha dos Assobios
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    La Gomera - A Ilha dos Assobios

    Pequenos acordos com a lei

    por Bruno Carmelo

    “Estes são os meus princípios. Se não gostar deles, tenho outros”, brincava Groucho Marx. A corrupção de todos os dias – aquela dos subornos, das assinaturas falsas ou da sonegação de impostos – constitui o centro de The Whistlers, trama policial que evita a maquinação espetacular normalmente associada à espionagem para privilegiar as mesquinharias e conchavos de gente pequena tentando lucrar na vida. O diretor Corneliu Porumboiu traça o retrato de uma Romênia corroída pela malandragem alegre e consentida, na qual todo homem tem o seu preço e o roubo se especializou a ponto de desenvolver uma língua própria.

    Trata-se do silbo, a “língua assobiada”, segundo a qual cada som corresponde a uma letra, permitindo que pessoas transmitam mensagens secretas sem o risco de serem compreendidas. Cristi (Vlad Ivanov) trabalha tanto para a polícia de Bucareste quanto para mafiosos; sua chefe Magda (Rodica Lazar) não hesita em plantar provas do crime para ganhar tempo na investigação; a bela Gilda (Catrinel Marlon) aproxima-se de policiais e bandidos contanto que lhe forneçam as vantagens necessárias. Neste roteiro pleno de cinismo, todos estão cientes das infrações cometidas pelos outros, tentando se adiantar na corrida e tirar proveito o quanto antes. Discute-se valores, mas nenhum personagem aparenta enriquecer significativamente com a prática: eles roubam, mentem e manipulam porque esta se tornou a regra.

    Devido à transparência do submundo do crime, o espectador constitui a única peça alheia a este universo, precisando compreender as regras do jogo à medida que a narrativa avança. Ao invés de explicar ao público as linhas gerais do plano e depois acompanhar a execução do mesmo (na vertente de um Onze Homens e um Segredo, por exemplo), descobrimos a estratégia quando já está sendo posta em prática, ao mesmo tempo em que apresentam suas falhas e riscos. Enquanto uma dúzia de personagens trai e manipula uns aos outros, o verdadeiro elemento trapaceado é o espectador, convidado a acompanhar um jogo do qual não faz parte, que parece acontecer não para os seus olhos, mas apesar dele.

    Letreiros na tela apresentam os nomes de alguns personagens (que também são nomes de capítulos) no intuito de fornecer, gradativamente, pistas que permitam completar o quebra-cabeça. Porumboiu desenvolve sua trama com leveza e senso de humor, sem acelerar as cenas para imprimir tensão nem tornar o desenvolvimento didático no intuito de agradar o espectador médio. Ao mesmo tempo, o cineasta se diverte com composições clássicas, muito bem fotografadas e filmadas, além do uso lúdico da língua assobiada, da música pop e rock e das reviravoltas constantes. The Whistlers jamais se leva a sério demais, constituindo um produto despretensioso sobre a ideia da justiça enquanto questão de mise en scène – nossos personagens são ao mesmo tempo diretores e atores da ficção que criam para si mesmos, encenando, produzindo e alterando fatos para produzirem uma imagem melhor. A corrupção se converte num elemento essencialmente cinematográfico.

    É curioso que tantos filmes da mostra competitiva do Festival de Cannes partam dos prazeres clássicos do cinema de gênero – o policial, o terror, o trash, o “filme B” – para em seguida embaralharem as peças, fornecerem ao espectador fragmentos desordenados. O prazer se encontra menos na trama do que na estrutura – no modo de contar ao invés do que é contado. Cannes sempre indicou, por seu recorte curatorial, algumas tendências de insubordinação ao cinema clássico narrativo: ora prefere-se a duração excessiva dos “filmes riacho”, ora se culpa os diálogos pelo didatismo ou a trilha sonora pela manipulação de emoções. Em 2019, a linearidade narrativa parece ser o elemento a evitar.

    Depois das transformações radicais na história do sangrento Bacurau e da ausência de causas ou consequências no violento The Wild Goose Lake, chega a vez de o projeto romeno fragmentar sua história para provocar os sentidos do espectador. O resultado funciona melhor enquanto exercício lúdico do que comentário sobre a falência das instituições, a ganância ou o individualismo contemporâneos.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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