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    Assunto de Família
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Assunto de Família

    A família que você escolhe

    por Bruno Carmelo

    À primeira vista, eles parecem uma família tradicional. A avó, o pai, a mãe, os filhos. Mas não demora muito para descobrirmos que o núcleo familiar de Shoplifters foi composto pelo acaso: uma ex-prostituta se juntou com seu cliente, recolheu uma criança abandonada, roubou outra da casa onde sofria violência. Eles escondem alguns segredos ainda mais graves na origem dos laços que os conectam. Mas no dia a dia, se amam, se cuidam, fazem as refeições juntos.

    Ao longo de toda a sua carreira, o diretor japonês Hirokazu Kore-eda se especializou em histórias de família, privilegiando os laços afetivos àqueles de sangue. De certo modo, o novo filme cristaliza essa noção, optando pela falta de julgamentos morais e demonstrando grande ternura por cada personagem. Eles roubam lojas para viver e se orgulham da própria esperteza, mas para a narrativa, o que importa é o afeto que são capazes de demonstrar um pelo outro. Sabemos que eventualmente a realidade terá que invadir este núcleo eletivo, mas os melhores momentos do filme se encontram no idílio do grupo. É quando a câmera se torna mais livre, a fotografia encontra seus melhores ângulos, efetuando melhor trabalho com luz natural, e quando o ambiente sonoro se torna mais complexo.

    Kore-eda sempre foi excelente em pequenas cenas domésticas, e demonstra mais uma vez a sua habilidade para criar ambientes dinâmicos, com diálogos deliciosos entre a mãe adotiva e a filha durante o banho, ou entre a avó e o genro durante uma pausa para o cigarro. Observamos o passar do tempo pela sucessão de estações (o calor do verão, a neve no inverno), descobrimos o aprendizado da última garota “incorporada” ao lar, a pequena Yuri, na arte do furto, enfim, torcemos por eles. O filme pede que olhemos para estes ladrões com carinho e nos identifiquemos com o núcleo tão diferente de qualquer norma moral ou institucional. Esta é, de certo modo, a melhor ideia do projeto: a proposta de empatia por alguém diferente.

    Infelizmente, alguns momentos fracos diminuem o potencial do conjunto. Eles se encontram parcialmente na introdução, mas em especial na conclusão. O espectador pode se perguntar qual problema virá perturbar a paz dos personagens: será a polícia? A equipe de vigilância de algum mercado? Para a nossa surpresa, o principal conflito diz respeito ao senso moral dos próprios personagens, quando um deles começa a questionar este modo de vida. Antes da transformação do drama ao suspense policial, a narrativa nos prepara com pequenos conflitos psicológicos. A ruína viria de dentro de cada um, e não do mundo exterior.

    Trata-se das cenas mais melodramáticas do filme, nas quais informações importantes são transmitidas de modo didático, ou as reviravoltas acontecem com velocidade excessiva. Além disso, elas se desenvolvem ao mesmo tempo, diminuindo a verossimilhança de um projeto que prima tanto pelo realismo. Mesmo assim, Shoplifters desenvolve as motivações e desejos de seis personagens fascinantes, criando belos instantes de interação entre eles. É muito difícil atingir uma dinâmica tão fluida, simples e realista quanto esta.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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    Comentários

    • Paulo A.
      FILME SENSÍVEL QUE ABORDA TEMA COMPLEXO. No centro de tudo, a discussão do conceito de família, costumes e tradições da família tradicional japonesa, o Japão moderno e os excluídos sociais. A inspiração conceitual na forma de filmar e no tema central do filme; a família - verdade que uma família um tanto disfuncional -, é Yasugjro Ozu, o mestre do cinema japonês, que construiu sua prolixa obra de 54 filmes, abordando temas da família e da rotina e o seu encanto. Quem ainda não assistiu ainda, a pelo menos um filme de Ozu na vida, não pode deixar de fazê-lo. E, se for escolher, que o faça logo pelos melhores: Era uma vez em Tóquio, Ervas flutuantes, Pai e Filha, Dias da Juventude, A rotina tem o seu encanto entre outros.Sobre esse Assunto de Família, de Hirokazu Kore é bom destacar que a família em questão é bem disfuncional e a narrativa, aos poucos, revela a história de cada personagem e membro dessa família. O prazer no cinema, pode ser alcançado por diversos caminhos, afinal; é a Sétima Arte! E, como tal, ela se apropria das ferramentas das outras artes para contar histórias e promover emoções, com imagens em movimento. Oferece conhecimentos, possibilita reflexões, informa, educa, transforma!A escrita cinematográfica é sempre uma dessas possibilidades. O diretor escreve com a câmera, já disseram! Mas o diretor de fotografia nos ilumina com suas imagens e tons. E, há a escrita propriamente, o chamado roteiro. Essa ferramenta cinematográfica, neste filme, é uma peça de destaque, porque além da forma como são desveladas as histórias das personagens, Hirokazu Kore, oferece aos espectadores, ainda, aquele prazer que todo cinéfilo gosta de experimentar em um filme: as descobertas surpreendentes, as viradas das histórias. E, esse filme é sim pródigo nos dois modos de contar a história. Calma e cirurgicamente os personagens e suas histórias emergem para o espectador, para logo no terço final do filme ser brindado com uma senhora virada na história, ou uma descoberta surpreendente. Tudo então fica mais as claras, mas não tudo, pois o ótimo cinema moderno deve sempre oferecer janelas para o espectador sonhar o filme.
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