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    O Gênero
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Gênero

    A arte em tempos de golpe

    por Bruno Carmelo

    O cenário onde se passa este documentário está marcado por contradições. Antigo porão onde se praticava tortura de Estado, o espaço é alugado por uma jovem trupe de teatro punk que encena crimes, mortes, festas, orgasmos. O porão fechado recebe, via rádio, as notícias da tentativa de golpe de Estado na União Soviética, em agosto de 1991. Trata-se do Putsch de Moscou, que enfraqueceria o regime comunista e contribuiria à sua dissolução naquele mesmo ano. O espaço vazio onde se deslocam os atores representa ao mesmo tempo a liberdade e a prisão, a realidade e o escapismo.

    O Gênero é o nome da peça preparada pelos atores. Devido às reviravoltas políticas, eles se veem obrigados a incorporar a realidade ao trabalho que estão realizando. O espetáculo em questão, vale ressaltar, consiste numa colagem anárquica de provocações sociais, esquetes anticapitalistas e paródias do liberalismo americano. Estamos mais próximos do terreno da performance politizada do que da encenação clássica. Em VHS, os ensaios foram registrados de modo igualmente extremista, como um making of caseiro. Este movimento de apropriação possui um interesse próprio: uma obra de arte (a peça) foi registrada por imagens sem pretensão artística (o making of), porém resgatadas por um cineasta e remontadas de modo a se tornarem, por sua vez, obra de arte (o documentário de 2017).

    O documentário, por si próprio, funciona como uma performance, um exercício cinematográfico cujo valor se encontra, ao menos em partes, em sua própria existência. Independentemente da qualidade da filmagem ou da encenação teatral, o ato de resistir, de criar uma obra contrária às maquinações do poder dominante constitui um mérito em si. Os atores vão além, desenvolvendo uma obsessão por armas de fogo, apontadas em todas as cabeças, e também em direção ao espectador. Além disso, os atores criticam a arte dita convencional, clássica, como as esculturas renascentistas. Busca-se a destruição da norma, a quebra dos paradigmas. “Isso é asqueroso, delirante”, diz um membro do elenco a certa altura da trama em relação ao trabalho que eles mesmos efetuam.

    Ao diretor Klim Kozinsky, cabe costurar esse material de arquivo levando em consideração uma série de aspectos: 1. A textura do VHS antigo remete às décadas de 1980-1990 e à proliferação das imagens amadoras e das imagens de si mesmo, muito antes das selfies e dos smartphones, 2. A montagem deve se adequar ao conteúdo, de modo que a costura das esquetes anárquicas se torna igualmente caótica, 3. Para completar o material da época, o cineasta busca conteúdos fantásticos como a lenda da bela ninfa Cila, transformada em monstro marinho, 4. É preciso levar em conta a distância política entre 1991 e 2017, de modo que o projeto questiona a si mesmo e à sua linguagem, em especial quando um ator diz que o documentário seria o formato menos adequado para registrar a arte contemporânea.

    “O enredo não tem importância nenhuma. O que interessa é a substância”, diz um personagem de O Gênero, reflexão que cabe ao filme como um todo. A busca pelos prazeres do gênero – o terror, o suspense, o trash, o ridículo, o paródico – se torna uma arma poderosa para representar tempos absurdos e igualmente ilógicos na política nacional. O mundo invade a arte, e o artista traz a responsabilidade de produzir um conteúdo que reflita, direta ou indiretamente, a realidade ao redor. Talvez o procedimento não desenvolva muito a sua premissa estética ou a sua dimensão política, porém reforça o papel da arte como estímulo e comentário do mundo, fazendo dela um instrumento essencial para qualquer sociedade democrática.

    Filme visto no X Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro de 2017.

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