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    Rosa Chumbe
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Rosa Chumbe

    Inferno e paraíso

    por Bruno Carmelo

    A policial Rosa Chumbe (Liliana Trujillo) é apresentada como um corpo se deslocando pela cidade. Não apenas qualquer cidade, mas o centro popular de Lima. Rosa passa pelos centros comerciais, vielas escuras, barracas de comida, estações de trem, ônibus lotados. Sem pronunciar uma palavra sequer, o filme a insere num caos urbano asfixiante, repleto de vozes, ruídos, cheiros, cores, texturas. Rosa é uma anônima na multidão, uma presença qualquer entre tantas pessoas semelhantes. A porta de entrada para o drama é sua configuração espacial, sua infinidade de estímulos. Rosa torna-se produto de uma cidade agressiva e massificante.

    Em seguida, conhecemos efetivamente a vida da protagonista, uma espécie de consequência direta do caos urbano. Rosa leva uma vida solitária, dividindo o pequeno apartamento com a filha Sheyla (Cindy Díaz), com quem não se entende bem, e com o filho recém-nascido dela. Rosa passa as noites bebendo álcool, aumentando o volume da música para abafar os gritos da criança, engolindo qualquer comida de rua enquanto assiste a programas de humor popular na televisão. Este é um mundo tristemente desprovido de afetos ou amizades. No melhor dos casos, as pessoas se toleram, no pior dos casos, se agridem. A câmera acompanha Rosa e Sheyla em suas andanças pelas ruas, colada aos rostos cansados, ao cabelo bagunçado, ao suor das peles.

    Durante a apresentação de Rosa Chumbe, o curador da Mostra Peruana descreveu o projeto como um exemplar do ultrarrealismo. Mais do que o retrato urbano sem idealização, o drama se aproxima de uma armadilha comum ao gênero: o fetichismo da miséria, a exploração agravada das dores de pessoas desfavorecidas em prol de uma impressão de realidade que se converte em mérito estético para o autor. Felizmente, o diretor Jonatan Relayze foge a este caminho graças ao fato de jamais julgar as suas personagens, além de extrair dramas comuns à vida cotidiana: Rosa tem poucas opções de alimento, mas não passa fome, ela tem um emprego precário, mas ainda se sustenta, ela vive solitária, mas trava contato eventual com algumas pessoas. O filme apara suas arestas, atenua a sensação de calvário, criando uma protagonista verossímil.

    As atrizes se entregam aos papéis sem vaidade ou reservas. Liliana Trujillo desenvolve uma complexa evolução para sua personagem através dos olhares e da postura corporal, enquanto cabe a Cindy Díaz a expressão de um desespero silencioso e solitário. O diretor controla muito bem cada registro, evitando lágrimas, gritos ou demais sinais externos: o roteiro guarda um grito preso na garganta, mesmo quando uma tragédia afeta a vida da protagonista. Novamente, o choque é expresso sem sons, e Rosa não tem a quem recorrer. O espectador é colocado em posição de testemunha solidária, porém impotente, acompanhando o calvário junto dela: somos os únicos, nesta cidade de milhões de pessoas, a saber o que de fato aconteceu dentro daquela casa.

    Rosa Chumbe se conclui com uma bela ironia. Em seu desespero, a policial adentra uma imensa procissão religiosa pelas ruas da capital. A câmera móvel tentando se ajustar à personagem na multidão, espremida entre manifestações de fervor religioso, remete às obras de Glauber Rocha e do Cinema Novo como um todo. Depois de rogar à Virgem, algo se transforma: seria um milagre? Uma ilusão? Um sonho? Relayze permite um pequeno respiro depois de tamanha asfixia, um instante singelo de poesia, que talvez nunca tenha de fato acontecido. Novamente, somos os únicos a testemunhar os fatos. O drama se conclui como se Rosa nunca tivesse realmente existido para as demais pessoas, apenas para nós. Nesta profunda cumplicidade entre personagem e espectador se constrói um humanismo bruto, marcante.

    Filme visto no 28º Cine Ceará – Mostra Ibero-Americana de Cinema, em agosto de 2018.

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