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    O.J.: Made in America
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    O.J.: Made in America

    Uma história negra americana

    por Rodrigo Torres

    O.J.: Made in America pode se tornar a primeira minissérie vencedora do Oscar. Inteligentemente lançado em festivais e num circuito comercial limitado a fim de torná-lo elegível ao Prêmio da Academia, o documentário é composto de episódios claramente delineados, que se iniciam num ponto diferente da história, abordam um novo tema — enfim, apresenta uma típica estrutura serializada. A estratégia de "torná-lo" um filme, porém, é mais do que válida. A aclamação e os prêmios resultantes da jogada são um reconhecimento merecido à obra-prima da (subestimada) ESPN Filmes. Ezra Edelman alcançou uma façanha, um tour de force de 8 horas sobre uma história negra americana em soma à história negra americana.

    A fama de O.J. Simpson se iniciou na universidade. Atleta versátil, ele optaria pelo futebol americano e se tornaria um dos maiores do esporte. Ambicioso, a franquia Buffallo Bills seria pequena demais para ele. A vida numa cidadezinha fria, algo entediante. Juice (seu apelido) buscaria rumos mais altos: Hollywood. Teve uma mansão em Beverly Hills, amigos da alta sociedade, uma carreira de ator, grande destaque como garoto-propaganda, prosperidade nos negócios. Foi aceito. Apesar de negro. Quer dizer, O.J. nunca foi visto como negro. Pela sociedade, por seu talento e carisma, sendo "enbranquecido". E pelo próprio espelho, por ele mesmo — por quê? É então que O.J.: Made in America mergulha na psique do homem, voltando desde a sua infância.

    A primeira conclusão sobre Orenthal James Simpson é que ele sempre foi um ser humano egoísta. A sobrevivência numa vizinhança pobre é difícil, os pequenos furtos quando criança até são compreensíveis. A deslealdade aos amigos, não. A competitividade desmedida tampouco. O.J. nunca hesitou em passar por cima dos outros para vencer. Sempre quis ser o melhor. Superior. Ser negro significava ser inferior. Ele nunca aceitou. Em vez de lutar, usou o poder para transcender à raça. Assim, em plena década de 60, se manteve alheio ao turbilhão racial nos Estados Unidos. Quando chamado para representar o movimento dos direitos civis e por anos a fio. "Não sou negro. Sou O.J.". Um dia, enfim, viria a adesão à causa. Nos anos 90. Não por ideologia. Juice aceitaria o ícone negro em si e denunciaria o racismo que tanto minimizou somente para se livrar da cadeia, pelo assassinato da esposa e de um amigo dela. Por puro egoísmo.

    Ezra Edelman toma todo o tempo necessário para recontar minuciosamente a vida de O.J. Simpson. Quem pensa conhecer a sua história, conhece uma nova história. Muito maior, mais complexa. Ao seu dispor, depoimentos reveladores de gente próxima a Juice. A estrutura convencional da obra é compensada pela riqueza desse conteúdo, profusa em imagens de arquivo, brilhante em reconstituir a sua glória. Vez ou outra, ainda surge uma narração ocasional magnífica: de Joe Bell, o amigo de infância com voz de suspense e sem papas na língua. E o principal elemento do documentário: estabelecer todo o contexto racial que corre em paralelo à ascensão e à queda do personagem.

    Essa relação é intrincada. O despeito à causa negra e o posterior aproveitamento dela para benefício próprio são sintomáticos do caráter de Juice. Ao mesmo tempo, ele é apresentado como um produto do meio. Cujos meios para sobreviver e prosperar num cenário de profunda desigualdade, brutalidade, enfim descortinados, soam como um desastre anunciado. O oprimido que virou opressor. Do tipo literal, cruel no tratamento dispensado à mulher — em vida.

    Curiosamente, o efeito colateral que pauta esse fenômeno se repete mais tarde, no julgamento do século (aliás, ficcionalizado com excelência e detalhamento semelhante na primeira temporada de American Crime Story). Os jurados negros, embora convencidos de que O.J. fosse o assassino de Nicole Brown e Ronald Goldman, optam por absolvê-lo como resposta ao espancamento de Rodney King, ao histórico racista da Polícia de Los Angeles e de toda a sociedade, de todo um país. A vingança tem volta, quando Juice comete um segundo crime. O doc mostra de novo. Disseca. Monta um círculo vicioso em toda sua complexidade. Costura a tragédia pessoal com a tragédia social. O.J.: Made in America é fantástico.

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