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    Mirante
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Mirante

    País indiscreto

    por Sarah Lyra

    Mirante é um filme difícil de digerir, mais ainda de descrever. E o interessante é que o diretor Rodrigo John parte de uma premissa muito simples: acompanhar as relações humanas, sociais e políticas a partir do alto de seu apartamento no centro de Porto Alegre, uma espécie de Janela Indiscreta documental com um recorte naturalista brasileiro. O resultado é uma impressionante obra experimental, que evoca sentimentos e contradições diante dos três segmentos entrecortados: as relações humanas no entorno do prédio base, as reviravoltas políticas no Brasil e a vida de John, que se coloca em tela para costurar os acontecimentos.

    Em um primeiro momento, o documentário parece se apoiar em uma abordagem unicamente sensorial. As imagens não se unem para contar uma história da maneira tradicional esperada, mas a narrativa tem força, e intriga mesmo sem mostrar exatamente a que veio. Minutos depois, agora já habituados com o universo criado por John, os códigos em tela se tornam decifráveis. De forma consciente ou não, o realizador vai aos poucos oferecendo sinais que passam a formar um sistema mais amplo e sofisticado, embora a ideia de sentido, aqui, varie imensamente entre o concreto e o abstrato.

    É perfeitamente possível que, ao olhar para as imagens concebidas por John, como as de trabalhadores executando a manutenção das fachadas dos prédios vizinhos, uma parte do público veja beleza no simples fato de estar diante de um ângulo até então pouco explorado; enquanto um outro grupo pode atribuir um significado aprofundado com base em suas próprias vivências e pré-concepções. Há ainda a possibilidade de que se veja apenas paredes, janelas e ruas, sem que esses elementos despertem uma leitura mais elaborada. John se mostra ciente da condição privilegiada de estar fisicamente acima de seus objetos de estudo — e também oculto, pois não se revela para seus observados como estes se revelam para o observador —, e usa isso como linguagem para comunicar. O que se compreende a partir dessa comunicação, no entanto, é inteiramente subjetivo. O que um vê, certamente não é o que outro enxerga. O realizador, o retratado e o espectador partem de lugares distintos para ler as imagens.

    Com o avançar do longa, as repetições começam a formar padrões, e a partir desses padrões a linearidade fica mais em evidência. John passa a repercutir acontecimentos políticos recentes, como as manifestações pró-impeachment de 2013, através de hiatos arquitetônicos que revelam pedaços de ruas, o ir e vir de um navio, sacadas e janelas de apartamentos, e até um canteiro de jardim, que vai se modificando não só pela poda das plantas, como também pelos dizeres políticos estampados na mureta ao lado. Note como o diretor é sutil ao relacionar a presença e ausência de um Fora Temer, um recurso simples que reflete o momento político em questão. Mesmo sem qualquer menção direta, é possível identificar que, em um primeiro momento, Dilma Rousseff corria o risco de perder a presidência; no instante seguinte, Temer já era o novo governante. Cenas como essa demonstram a força do roteiro e, principalmente, da montagem do documentário.

    Por conta dessa sutileza tão bem executada por John, a cena que mostra tão explicitamente a polêmica fala de Jair Bolsonaro, em sessão do Conselho de Ética da Câmara, destoa do conjunto, já que o cineasta escancara um absurdo, quando sua abordagem, até então, era mais voltada para uma sugestão. Mesmo que fosse no sentido de propor uma ruptura com seu processo artístico anterior — afinal, é isso que Bolsonaro representa, uma ruptura agressiva em todos os sentidos —, a intenção não fica tão clara. Um outro revés na produção se dá também na dificuldade de se encerrar. Seja pelo caráter diferenciado da narrativa ou pelo que se imagina ser um enorme acervo de imagens, John, nos minutos finais, se alonga e acaba se repetindo — o efeito com vozes intercaladas apresenta um problema similar e é usado de forma excessiva.

    Ainda assim, Mirante é um marco pela ousadia em se apresentar como um documento intimista e experimental de sua conturbada época, um período em que o novo, as artes e o pensamento crítico nunca estiveram tão sucateados.

    Filme visto no 26º Festival de Cinema de Vitória, em setembro de 2019.

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