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    Eu Não Sou Seu Negro
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Eu Não Sou Seu Negro

    Um grito à consciência

    por Rodrigo Torres

    O Oscar 2017 traz uma grata particularidade: a categoria documentário. Parelhos em excelência, seus indicados também portam a similaridade da temática social. Se, em Vida, Animada, a linda relação de um menino autista com as animações da Disney contada pelo próprio pai destoa um pouco, o italiano Fogo no Mar, sobre o problema da imigração africana na Europa, toca na questão racial que une os concorrentes mais aclamados: a obra-prima O.J.: Made in America, o embasado A 13ª Emenda e o filme em questão, Eu Não Sou Seu Negro — o mais complexo.

    Esta qualidade reside na voz de Eu Não Sou Seu Negro: o brilhante escritor e pensador James Baldwin. Com seu olhar expressivo (literal e figuradamente, no campo intelectual), Baldwin assistiu atônito a dois momentos cruciais de uma tragédia americana. O primeiro, a humilhação imposta a Dorothy Counts, primeira jovem negra a ingressar num colégio exclusivo para brancos. Eis o momento em que o racismo, catalisador de um exílio autoimposto na França, também motiva o retorno do autor aos Estados Unidos. O segundo foi o assassinato de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. O massacre dos três maiores líderes negros da década de 60 nos Estados Unidos foi a inspiração de "Remember This House", manuscrito nunca transformado em livro, mas em filme por Raoul Peck.

    Portanto, Eu Não Sou Seu Negro tem a singularidade de adaptar um esforço ensaístico baseado em fatos históricos amplamente retratados em vídeo. Do mesmo modo, James Baldwin expôs seus pensamentos em diversos programas televisivos — o que, aliás, denota um outro momento da TV norte-americana. Pois Raoul Peck se apropria deste vasto material para montar o documentário com profundo respeito ao escritor, combinando trechos de suas entrevistas e palestras com as ideias contidas exclusivamente no manuscrito (e narradas muito sobriamente por Samuel L. Jackson) e imagens históricas, de ontem e de hoje (o que denota a atualidade de suas digressões).

    A montagem, assim, articula com muita eficiência o conteúdo de Eu Não Sou Seu Negro. Um exemplo dessa constante é o momento em que James Baldwin examina que o mundo renega o sistema de realidade do negro. Em outras palavras, ele discursa sobre representatividade. Mas o diretor haitiano não trai o discurso sofisticado do crítico social; torna-o inteligível ao espectador mostrando o significado desse conceito. Assim, enquanto vemos John Wayne matar índios em um faroeste clássico, Baldwin explica o impacto disso na infância de uma criança negra: só mais tarde ela terá consciência de sua raça e entenderá que não é o herói fazendo justiça com as próprias mãos, mas os nativos, os selvagens, os "de cor" sendo chacinados.

    Assim como não subestima a complexidade dos conceitos de James Baldwin, até conferindo um ritmo dinâmico ao longa-metragem (para plena assimilação, Eu Não Sou Seu Negro é um filme a ser visto e revisto), Raoul Peck ressalta a habilidade do escritor com as palavras, de criar frases de efeito (na melhor acepção do termo) e uma série de dicotomias para perceção do racismo. O preto que se manifesta: louco, uma ameaça. O branco: patriota. O ódio do homem negro: raiva. Raiva apenas. Um sinônimo que basta quando as imagens do documentário e o próprio cotidiano do espectador gritam desigualdade — motivo desse sentimento. O ódio do homem branco: terror social. Algo que existe só na mente do branco. Em suma: o negro é quem nunca fez nada para ser odiado.

    As ramificações desse pensamento rumam ao clímax de Eu Não Sou Seu Negro, numa discussão entre James Baldwin e Paul Weiss no Dick Cavett Show. O fillósofo minimiza as distinções raciais de maneira simplista: "Todo homem é igual", numa fala em plena sintonia com os argumentos de quem hoje desmerece a militância negra ou prega o absurdo "racismo reverso". A resposta de Baldwin a esse "idealismo mágico" é uma tempestade sobre preconceito institucionalizado que tanto rebate a tese surtada de Weiss, dois meses após o assassinato de Martin Luther King Jr., como o deboche de jovens Brasil afora que hasteiam a bandeira do "geração mimimi" sempre que uma minoria levanta sua voz.

    Esse grito à consciência é a grande força de Eu Não Sou Seu Negro. Mesmo quando chorou de raiva, não de tristeza, pela morte de Martin Luther King, James Baldwin nunca aderiu ao (dito) radicalismo de Malcolm X. Sempre razoável, sempre combativo, num movimento de ideias que congregam à empatia. "O futuro dos Estados Unidos depende de como tratamos o negro". "História não é passado, é presente". Mais que frases de efeito, conscientização, frases de convocação.

    Eu Não Sou Seu Negro versa sobre um "desejo de pureza" que impede o homem branco de admitir suas falhas — ao contrário, o motiva a defendê-las selvagemente. Ao homem branco consciente, além de compreender o que se diz, resta a vergonha. Um mal-estar que se mantém para além da sessão desse poderoso documentário, e é muito positivo. Do desconforto, nasce a indignação. A palavra de ordem é nunca se conformar, com a desigualdade sobre si e sobre o outro. Nunca se calar, e muito menos calar quem sente o peso do preconceito. A "apatia moral" é o maior inimigo de James Baldwin.

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