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    O Inverno
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Inverno

    A violência invisível

    por Bruno Carmelo

    Entre os vários tipos de violência possíveis – de gênero, física, psicológica – o drama argentino O Inverno se dedica a uma espécie particularmente relevante nos tempos contemporâneos: a violência das relações de trabalho. Estamos falando do abuso de poder que permanece dentro da esfera legal, ou pelo menos em limites dúbios, decorrentes da instauração de hierarquias. São casos que poderiam render retaliações, mas não costumam despertar consequências, pois a busca por direitos implicaria uma disputa desigual e custosa ao trabalhador.

    Evans (Alejandro Sieveking) trabalha como coordenador dos funcionários de uma fazenda na Patagonia. Ocupando o mesmo cargo há décadas, o homem idoso gosta de exibir seu domínio sobre os homens pobres que tosam as ovelhas e andam a cavalo. No entanto, ele também possui um chefe, no caso, o proprietário das terras. Com a chegada de Jara (Cristian Salguero), um homem jovem e talentoso, Evans percebe que sua posição pode estar em perigo. Nasce uma relação ambígua entre ambos, mistura de admiração e inveja, aproximação e rivalidade. O veterano aprecia o concorrente, em partes, por enxergar nele um outro de si mesmo.

    O diretor Emiliano Torres desenvolve esta premissa com uma sutileza e eficiência ímpares. Pelo menos 30 minutos são dedicados apenas a apresentar os protagonistas, a descrever a rotina na fazenda, as ações repetidas, com pequenas trocas de olhares repletos de significados. A fotografia faz do ambiente inóspito um personagem à parte, explorando muito bem a tristeza dos trabalhadores em cenários amplos e vazios. A brutalidade das ações constrói a sensação de perigo iminente: cada briga entre os homens, cada demonstração desmedida de virilidade reforça a impressão de uma terra sem leis, regida pela sobrevivência do mais forte.

    Aos poucos, o desconforto entre os personagens se torna concreto. Alguns tiros são ouvidos de um lado, alguns cães mortos do outros, enquanto tentativas de suborno criam a impressão de que Jara está sendo intimidado. O diretor sabe construir uma tensão permanente ao mostrar o mínimo necessário: enquanto Evans esconde um passado familiar nada amistoso, Jara tem seus próprios segredos. Ambos os casos são tratados com devida sinceridade – nenhuma cena soa forçada apenas pela construção do suspense. A ótima dupla central de atores investe em tipos físicos, carrancudos, que se espelham ao invés de se oporem. A diferença entre o novo e o antigo, afinal, importa pouco num sistema em que a possibilidade de ascensão social é nula.

    Quando eles percebem que o inimigo não é um ao outro, e sim a força contratante comum a ambos, é tarde demais. O Inverno conclui as trajetórias de cada personagem com uma ironia cortante. Talvez o filme se perca um pouco na montagem paralela, esquecendo personagens durante um tempo excessivo antes de reencontrá-los, e o roteiro também exagera no valor simbólico de determinados objetos (o cavalo de madeira, em especial). Mesmo assim, ele retrata uma melancolia potente, um grito preso na garganta de homens tratados como objetos descartáveis, e incapazes de lutarem contra a situação. Sem frases de efeito nem metáforas óbvias, o filme desenvolve um discurso político humanista através de uma fábula sangrenta.

    Filme visto no 12º Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo, em julho de 2017.

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