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    Mormaço
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Mormaço

    Legado olímpico

    por Taiani Mendes

    Mormaço é aquele negócio que não conseguimos tocar, é meio difícil de definir em palavras, mas, sentindo-o, não temos dúvidas, assim como são notáveis suas consequências. Título mais condizente a diretora Marina Meliande não poderia ter escolhido para sua estreia solo, um longa-metragem que une ficção e documentário para representar o desconforto nascido de um inabitável Rio de Janeiro às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016.

    Estreando em voo solo, a cineasta dá formas, cores e movimentos a uma sensação que há anos acompanha os habitantes do caos conhecido como Rio de Janeiro: "Só tem monstro nesta cidade". A frase não é minha, é de Ana (Marina Provenzzano), defensora pública que batalha para impedir a remoção dos últimos moradores da Vila Autódromo, comunidade da zona oeste transformada em inimiga da Prefeitura pela recusa do grupo em deixar suas casas por conta das obras para o evento esportivo.

    Ana, personagem muito bem desenvolvida, trata de igual forma o porteiro do prédio, os clientes, vereadores, pessoas próximas e quem acabou de conhecer; corre no Aterro do Flamengo e vai de ônibus para a Barra da Tijuca; toma chopp na calçada e discute com o Secretário de Habitação sem descer do salto; mora em meio a uma paisagem de prédios e tem o apartamento abarrotado de plantas; é uma ponte entre dois mundos não apenas profissionalmente, mas também em estilo e atitudes. Nesse papel de condutora, acaba absorvendo mais imediatamente do que outros o mal que abafa a cidade junto com a poeira dos canteiros de obras e o calor do famoso verão 40 graus. Uma marca na pele ao descobrir que está prestes a perder seu apartamento em virtude da construção de um hotel é o indício de que as coisas realmente não estão nada bem, e, a partir de então, o quadro só se agrava tanto no corpo dela, quanto na capital fluminense.

    Meliande não cita nomes, mas todos sabem quem são os vilões, e sua grande proeza é realizar um filme extremamente politizado e verídico usando drama, suspense e fantasia. O problema não está restrito às ruas, tampouco à comunidade em que você não mora. Luz e água são cortadas na Vila Autódromo como pressão pela saída dos resistentes, e em zona privilegiada da cidade Ana também se vê sem os dois abastecimentos (claro que por outros motivos) porque existe um clima de horror generalizado, talvez disseminado pela fumaça dos escombros da controversa demolição da Perimetral - mostrada em imagens de Vik Muniz, Andrucha Waddington, Liana Brazil e Russ Rive.

    A personagem principal não descobre o que a faz agir de forma cada vez mais estranha e animalesca, a Vila Autódromo vai perdendo mais e mais casas, e a atmosfera construída é de incômodo e nenhuma ideia do quanto e como tudo pode piorar. Há uma garra autêntica nos moldes de Era o Hotel Cambridge nas sequências da Vila Autódromo que misturam atores e moradores. Há um quê de Aquarius no prédio que vai se esvaziando deixando sozinha Rosa (Analú Prestes), como a Clara de Sônia Braga firme em suas decisão de não negociar.

    A irritação avermelhada nas costas da advogada e a trilha ruidosa que acompanha seus primeiros sintomas remetem a muito já visto no cinema recente, porém Meliande imprime identidade própria pelo rumo diferenciado que as coisas tomam e pela abordagem não naturalista, que rende, entre outras coisas, frases desde já icônicas como "Não sei se quero que você se sinta melhor" e "O que você faz quando não está desalojando pessoas?", disparadas num contexto de sedução embalado por uma mistura de rock com candomblé. Além disso, Mormaço por vezes assemelha-se a um compilado de cenas fortíssimas que vão direto ao ponto sem necessidade de falas, som ou qualquer outra coisa além da imagem, como o desaparecimento inicial, a procissão em frente à Arena Olímpica e o muro em que se lê "Acostume-se, nós vamos ficar" indo abaixo.

    Numa crescente letargia, a protagonista vaga sob o sol de cachecol e ninguém estranha; o apartamento será alugado a quem pagar mais e ninguém reclama; a polícia chega para invadir e todos sabem como vai terminar. Em verdade, o que por fim acontece com a protagonista conectada demais (ou na medida certa, desprezada pelos outros) ao ambiente é o menos esquisito disso tudo. Impossível esquecer aquele barulho de espalhamento, motivo para sorriso de uns e pavor de outros. Boa luta, cariocas.

    Filme visto no 46º Festival de Gramado, em agosto de 2018.

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