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    Ralé
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Ralé

    Marginal com orgulho

    por Bruno Carmelo

    Depois de Luz nas Trevas, a diretora e atriz Helena Ignêz continua a referenciar o cinema marginal em Ralé. A produção funciona como uma homenagem, mas também uma atualização aos novos tempos e linguagens: enquanto resgata a famosa Sônia Silk, cria personagens inéditas como a Exibicionista, com a qual Sônia tem claro parentesco. Ralé é uma viagem no tempo, uma maneira de dizer que o cinema marginal nunca acabou, apenas se reinventou, encontrando outras brechas no sistema.

    A cena inicial é uma verdadeira pérola, a melhor de toda a projeção. Uma artista (Djin Sganzerla) pega um rolo de fita isolante preta e começa a aplicá-la diretamente nas bordas da imagem, modificando o enquadramento, criando um novo formato para a tela. A cena não tem pressa em censurá-la: a atriz controla a direção e o tempo do gesto. Este é o personagem-autor por excelência, uma bela metáfora do cinema feito com pouquíssimos recursos, e um símbolo da preocupação metalinguística inerente a este tipo de projeto.

    Por isso mesmo, o roteiro está repleto de pessoas que contribuíram ao cenário artístico marginal nas últimas décadas: Ney Matogrosso, José Celso Martinez Correa, Mario Bortolotto, além da própria Helena Ignêz. São figuras de exceção, que defendem uma arte anárquica e libertária, amante dos corpos livres, da sexualidade plural, do uso de drogas e outras experiências de contato com a natureza. Em esquetes livremente interconectadas, mulheres reivindicam o direito sobre seus corpos, casais gays se casam, viajantes numa chácara tomam chá ayahuasca.

    Na maior parte da projeção, enquanto assume seus excessos narrativos e estéticos, Ralé flui de modo coeso. Trata-se de um filme politizado em sua essência, ainda mais importante às vésperas de um golpe contra a democracia no país. É um símbolo poderoso ter os veteranos das artes ao lado da nova safra de atores e cantores (Djan Sganzerla, Simone Spoladore, Ariclenes Barroso, Dan Nakagawa), como se estivessem passando o bastão para a continuidade na resistência face à homogeneização do cinema comercial.

    Nas tentativas de ser linear e narrativo, entretanto, o projeto perde um pouco de sua força. A história familiar em torno do Barão (Ney Matogrosso), com seu filho e seus amigos, é pouco desenvolvida e convencional demais para o conteúdo que veicula. As cenas do Barão com o filho parecem vindas de um filme diferente, um drama menos forte e interessante que Ralé, apesar da qualidade de ambos os atores.

    O filme também se perde quando busca explicar demais suas referências e intenções, tanto nas citações explícitas à obra homônima de Máximo Gorki quanto nos diálogos em que se brinda às ideias libertárias, já suficientemente exploradas pela imagem. Mas o discurso parece tão importante a Helena Ignêz que a diretora deve ter julgado necessário sublinhar a mensagem, como uma bandeira política.

    De qualquer maneira, Ralé proporciona uma experiência ousada, uma visão progressista sobre o cinema, a arte e a sociedade de modo geral. É um cinema marginal com orgulho, sem intenção juvenil de chocar, apenas representar um ideal harmônico e alternativo ao sistema vigente.

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