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    Neruda
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Neruda

    A vida é uma obra de ficção

    por Bruno Carmelo

    De todos os momentos amplamente documentados da vida de Pablo Neruda, este filme se dedica ao período mais misterioso de sua trajetória: o exílio. Perseguido pelo governo totalitário chileno, o poeta comunista se refugiou no sul do país, embora biógrafos discordem sobre os passos exatos de Neruda pelo continente. É nesta brecha da História que entra o diretor Pablo Larraín, transformando a biografia num exercício de imaginação.

    O projeto faz questão de não se levar a sério em termos de tom ou recriação de época. O vaidoso escritor (Luis Gnecco) faz questão que a perseguição seja “selvagem”, que ele “entre na História no final”. O arrogante policial ao seu encalço, Oscar (Gael García Bernal), deseja provar suas qualidades e alcançar a fama. O jogo de gato e rato é visto menos como um ato ideológico do que como uma ficção elaborada por estes homens: uma guerra de símbolos, de ícones, de imagens. O perseguidor e o perseguido constroem juntos a versão que convém melhor aos dois. Por isso, nunca se afastam um do outro. “Ele jamais perderia o fim de sua história”, diz Oscar sobre seu alvo, que faz questão de esperar pelo carrasco.

    Os jogos de poder são vistos como uma farsa. Ao invés de mostrar perseguições implacáveis na estrada, Neruda apresenta os personagens dentro de carros, com um cenário falso servindo de referência espacial. Quando Oscar encontra a espirituosa esposa de Neruda (interpretada por Mercedes Morán), eles discutem sobre a importância do espetáculo da busca. “Vá persegui-lo!”, aconselha a esposa sobre o próprio marido. O roteiro narra a trajetória desses dois homens de modo retrospectivo, o que imediatamente retira o aspecto verídico dos atos oferecidos ao espectador. As pessoas têm seus destinos traçados, como se fossem criadas por um escritor. Os personagens fictícios Neruda, Oscar e Delia são invenções, e sabem disso.

    É interessante a maneira como Larraín adapta a poesia ao cinema. Nada de longas declamações - o roteiro inclusive brinca com a repetição cansada do famoso “Posso escrever os versos mais tristes essa noite”. O cineasta recusa-se a ilustrar a poesia, preferindo adaptá-la em imagens. Os personagens tornam-se seres poéticos, dotados de falas corriqueiras, mas lúdicas; a iluminação sugere algo próximo do realismo fantástico, e o cenário se transforma dentro da mesma cena, num simples corte da edição, no meio de um diálogo. É como se o escritor tivesse mudado de ideia, apagado algumas palavras e trocado por outras. A história e a História podem ser reescritas como se desejar.

    Dentro da filmografia do diretor, talvez esse seja o seu filme mais leve. Neruda deve mais à ironia de No do que ao sombrio retrato de O Clube, embora todos os três se aproximem pelos jogos de iluminação e pela exploração nada idealizada dos seres humanos. O poeta não se torna um herói, pelo contrário: ele é visto como um tipo egocêntrico, sentindo-se superior a outros colegas comunistas que compartilham a mesma luta - algo brilhantemente explorado numa briga no restaurante. Quanto mais inclui momentos de fantasia, mais o cineasta se aproxima das biografias exuberantes de Peter Greenaway (Que Viva Eisenstein!) ou Alejandro Jodorowsky (Poesia Sem Fim). Larraín ainda está longe da paixão pelo grotesco que inspira os outros dois, mas o desejo de abraçar os fatos como motor para a ilusão une os três criativos cineastas.

    Como retrato da perseguição ao comunismo, ou como documento sobre a vida de um cânone cultural, o projeto pode decepcionar. Talvez este seja o filme para aqueles que já absorveram todos dados e números sobre a vida de Neruda, e agora precisam de um pouco de devaneio para equilibrar a frieza dos verbos. Ou talvez Neruda seja o filme perfeito para quem acredita que a função do cinema é subverter os fatos, apropriando-se do mundo existente para imaginar um mundo possível.

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