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    Ande Comigo
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Ande Comigo

    O militar e a bailarina

    por Bruno Carmelo

    As primeiras cenas se passam na guerra. O exército dinamarquês ocupa um país do Oriente Médio, e ao se aproximar de crianças para oferecer chocolate, Thomas (Mikkel Boe Følsgaard) pisa numa mina. Em câmera lenta, vemos o sangue espirrando, o militar gritando, o som externo desaparecendo diante da dor e da agressão – O Resgate do Soldado Ryan realmente fez escola neste sentido. Podemos nos sentir num filme de guerra padrão, repleto de lugares comuns temáticos e estéticos.

    Mas logo o drama aborda o seu verdadeiro tema: o trauma da guerra. Thomas sofre em duas vertentes. Pelo aspecto físico, precisa aprender a retomar os movimentos após perder ambas as pernas. Pelo aspecto psicológico, precisa compreender que o desejo de retornar à guerra em busca de vingança se tornou inviável, e que a impressão de superioridade em relação ao povo invadido não se sustenta mais. Em outras palavras, o macho alfa é obrigado a perceber a sua impotência. Ele o faz sendo particularmente grosseiro com as mulheres ao redor, como a mãe, a namorada (Silja Eriksen Jensen) e uma vizinha do hospital, a bailarina Sofie (Cecilie Lassen), que acompanha uma familiar doente.

    Por se tratar igualmente de um romance, o espectador pode antecipar o que vai acontecer entre Thomas e Sofie, além do paralelo evidente da mobilidade de ambos: Thomas não tem mais as pernas, Sofie usa as pernas para sobreviver. Ela faz saltos e giros, ele mal consegue se acostumar às próteses. Os opostos se atraem, se equilibram, e logo a moça sucumbe ao charme do sujeito constantemente agressivo. O público pode rejeitar a ideia da mulher bem-sucedida amorosa e profissionalmente dedicando tanto tempo a um tipo que a trata mal, porém a diretora Lisa Ohlin acredita na sinceridade desta união.

    Felizmente, Ande Comigo consegue se distinguir da maioria das produções do gênero. Primeiro, pelo aspecto amargo inserido na história: a aproximação entre os protagonistas nunca é simples, nem edulcorada. Os sentimentos de amor e ódio oscilam de maneira convincente – Thomas admira e repudia a ajuda de uma mulher com tamanha destreza nas pernas – e os encontros de ambos trabalham muito bem o silêncio e o incômodo. Os embates são duros, realistas, envolvendo tiros de revólver e pessoas deficientes lançadas em pleno rio gelado. O amor nunca é confundido com piedade, algo essencial para o tema abordado.

    Além disso, a construção psicológica dos personagens é excepcional: ao invés de simplesmente aceitar a sua nova situação e aprender a ser feliz com ela (trajetória típica do drama hollywoodiano), Thomas alterna entre níveis variados de aceitação, negação e projeção. Sofie demonstra-se mais dura ou mais flexível aos caprichos do rapaz, e transmite muito bem o seu cansaço e dedicação à dança – as cenas de balé são particularmente bem filmadas. Mesmo os personagens coadjuvantes ganham uma construção eficaz, com destaque à namorada de Thomas, sentindo-se negligenciada quando o companheiro deficiente dedica tanto tempo a si mesmo. Ohlin compreende os pontos de vista de cada personagem, tornando-os verossímeis e humanos.

    Esteticamente, o filme tem seus exageros, em particular na direção de fotografia e de arte. A luz naturalmente azulada do inverno dinamarquês é intensificada pelas imagens contrastadas e saturadas. Ande Comigo torna-se o filme mais azul nos cinemas em muito tempo (sim, incluindo as ficções científicas): os personagens usam blusas azuis em hospitais de paredes, portas e objetos azuis, e depois vão para as suas casas de paredes azuis, usar roupas de tons verdes e acinzentados que, com a escolha de iluminação, também se tornam azuis. Estranha insistência cromática que chama atenção demais para si mesma. Isso sem falar na escolha grosseira da arte gráfica, cortando as pernas da letra “A” no título original, “De Standhaftige”, em alusão às pernas de Thomas. Quem poderia achar que isso era uma boa ideia?

    O resultado tem seus altos e baixos. Algumas cenas são exageradas em tom e enquadramentos. Mas para cada momento sensacionalista da guerra, existem instantes muito belos de Sofie treinando, ou da jovem passeando com Thomas pela noite fria. Uma tragédia é tratada de modo particularmente respeitoso, enquanto a esperada apresentação da bailarina ganha um retrato delicado e comedido. Ande Comigo traz todas as passagens obrigatórias do romance e do drama de superação, porém com louvável complexidade no retrato humano.

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