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    Mundo Deserto de Almas Negras
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Mundo Deserto de Almas Negras

    Estética política

    por Bruno Carmelo

    Uma cidade de São Paulo em que a elite é formada por pessoas negras, enquanto os brancos vivem na periferia. Uma história contemporânea de máfia envolvendo corrupção partidária e carcerária. A premissa deste projeto tinha tudo para se tornar uma obra-denúncia sulfurosa, como nos filmes de Sérgio Bianchi. Mas apesar do ponto de partida provocador, o grande choque de Mundo Deserto de Almas Negras encontra-se em sua estética.

    Este é um filme de estranhamentos, desde a primeira cena num luxuoso restaurante, com as bordas do enquadramento ornadas por cortinas como se estivéssemos num teatro. Um advogado (Sidney Santiago) escuta seu cliente versar sobre o poder através de diálogos pomposos, enquanto uma mulher fatal se aproxima numa mistura de ameaça e a sedução. O beijo se assemelha a uma mordida.

    O espectador pode sentir certo desconforto diante destas escolhas, mas elas são feitas justamente para retirar o público das representações típicas do gênero. O elenco não atua de maneira naturalista, os enquadramentos buscam um tom próprio, a trilha funk-soul-hip hop traz sons nunca antes combinados com o gênero do crime, a direção de arte cria cenários remetendo a pinturas e a bela fotografia busca uma iluminação dura, contrastada, que chama a atenção para a própria fonte de luz, como nos filmes de Aki Kaurismaki.

    O desfile de deslocamentos em relação à norma se revela coeso, do início ao fim, graças a uma produção impecável, capaz de garantir que todos os aspectos técnicos dialoguem uns com os outros. O diretor Ruy Veridiano, do coletivo Heavybunker, compreende algo que muitos diretores políticos ignoram: para fazer uma obra contestadora, é tão importante subverter a forma quanto o conteúdo. De nada adianta embutir, sem reflexão, o discurso engajado nos moldes do cinema clássico-narrativo-comercial. O fundo precisa implicar uma forma própria, capaz de produzir estímulos diferentes daqueles suscitados pelo padrão dos estúdios.

    Veridiano, junto de Thiago B. Mendonça (Jovens Infelizes) e Tião (Animal Político), compreende a subversão política como algo aliado ao humor, ao grotesco, ao pop, ao mau gosto. Essa é a maior provocação de um filme que, por outro lado, revela-se casto nas representações de sexo, violência e drogas. O cineasta também não precisa sublinhar sua nova configuração étnica: ele acredita na capacidade do público perceber sozinho as consequências desta inversão. O filme ainda expande o conceito de etnia em devaneios lúdicos, quando o blackface se transforma em máscaras coloridas que brilham no escuro.

    É uma pena que a história recheando este exercício de estilo gire em falso. Pouco importa para que serve o tal celular destinado a um presidiário, ou que bases sustentam o poder da perversa Fundação, ausente da tela tal uma entidade kafkaiana. O acerto de contas rumo ao clímax também confunde mais do que aprofunda a construção dos personagens. Mundo Deserto de Almas Negras perde um pouco de sua força quando se aproxima da narração de crime convencional. Felizmente, as empolgantes experiências formais são mais que suficientes para merecer nossa atenção.

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