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    Uma Canta, a Outra Não
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Uma Canta, a Outra Não

    Pela liberdade das mulheres

    por Bruno Carmelo

    Como é rico poder assistir, na mesma semana em que deputados homens tentam proibir o aborto em caso de estupro no Brasil, a uma obra libertária como esta, de 1976, debatendo o direito ao aborto! A diretora Agnès Varda consegue retratar, através da figura de duas mulheres ao longo de dez anos, a autonomia feminina e as configurações possíveis de amor e de família, com uma naturalidade avançada demais para o conservadorismo político do século XXI.

    O título se articula através de uma oposição banal. O fato de Pomme (Valérie Mairesse) cantar, mas Suzanne (Thérèse Liotard) não, constitui apenas um detalhe da trama. No entanto, a brincadeira serve para sugerir um tom lúdico, próximo da fábula, sobre a oposição entre as amigas e a união entre as diferenças. A principal semelhança entre elas seria a experiência com o aborto e a indignação diante da autoridade masculina – Pomme contesta as ordens dos pais e namorados, e Suzanne, viúva, lida com o preconceito por ter tido dois filhos de um relacionamento extraconjugal.

    Ao invés de retratar o tema com a sobriedade de uma denúncia, Varda cria uma comédia de diálogos mordazes. Pomme não mede palavras antes de dizer o que pensa, resultando em confrontos hilários com as pessoas ao redor. Suzanne, mais reservada, descobre a independência de viver sozinha, com sua própria renda, desfrutando da companhia dos homens que deseja. O roteiro defende as experiências sexuais livres, a ausência de um “instinto materno” intrínseco ao sexo feminino, a responsabilidade igual dos homens no cuidado das crianças e as novas configurações de família, composta por laços afetivos ao invés de uma união consanguínea e/ou sancionada pelo Estado.

    Seria redutor classificar Uma Canta, a Outra Não como uma obra hippie, sintoma de um tempo passado. O projeto vislumbra uma possibilidade para o futuro, seja com a narração filosófica da própria diretora, em voz off, seja com os saltos temporais que demonstram o envelhecimento atrelado à autonomia das personagens. Existe grande beleza nesta história de amizade entre mulheres, sem espírito de competição, na qual o amor romântico por homens torna-se um laço secundário. Além disso, ambas as atrizes estão excelentes em seus papéis – Valérie Mairesse com o humor afiado, Thérèse Liotard com a profunda transformação da esposa deprimida à mulher independente. Chega a ser uma ironia que nenhuma delas tenha se destacado no cinema francês desde então.

    No quesito musical, as canções do filme trazem um discurso progressista movido pela frontalidade cômica. As letras sobre gravidez, aborto e cuidado com os filhos demonstram o tom politizado das personagens, e que serve ao filme como um todo. Assim como Pomme e Suzanne levam seu trabalho a cidades pequenas e mulheres desfavorecidas, Varda também pretende vender a sua história ao público médio através da estética acessível, do roteiro linear. O direito ao aborto, a dissolução da família patriarcal e o empoderamento feminino foram raramente retratados de maneira tão divertida e leve, e por isso mesmo, de alcance popular tão profundo.

    Filme visto no X Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro de 2017.

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