Dentro dos quartinhos de empregada: Documentário reflete sobre serviço doméstico no Brasil
por Paulo ErnestoEm Aqui Não Entra Luz, a diretora Karol Maia parte de um impulso íntimo de compreender melhor a própria história e, sobretudo, a trajetória de sua mãe, trabalhadora doméstica. O filme nasce do desejo de registrar depoimentos sobre um ofício que atravessa gerações no Brasil, sempre marcado por precariedade, invisibilidade e exploração. Ao olhar para esse universo, a diretora se lança em uma jornada pessoal e coletiva, alternando memórias familiares com a escuta de outras mulheres que dedicaram suas vidas ao trabalho doméstico.
O desenvolvimento do documentário parece ameaçado logo no início, quando sua mãe recusa o convite para gravar depoimentos. O gesto revela a dureza de expor dores tão profundas, que muitas vezes preferem permanecer guardadas. A frustração inicial, no entanto, não paralisa Karol. Pelo contrário, ela decide ampliar sua pesquisa e buscar outras vozes que, como a de sua mãe, carregam bagagens e dores semelhantes.
A obra, então, ganha corpo a partir de relatos múltiplos, construindo um mosaico de experiências individuais que, reunidas, denunciam uma realidade estrutural.
Embaúba Filmes
Um dos eixos centrais do filme, que também dá nome à obra, é a análise dos chamados “quartinhos de empregada”, espaços de média de 5 metros quadrados, geralmente próximos à área de serviço. Karol os apresenta como uma invenção tipicamente brasileira, que perpetua uma lógica de confinamento e segregação. Esses cômodos minúsculos não são apenas ambientes físicos, carregam consigo a ideia de que descanso é luxo e que o trabalho deve consumir a totalidade da vida da empregada.
O espaço, que deveria simbolizar acolhimento, se transforma em extensão de um vida em cativeiro. O documentário mostra como muitas mulheres tentam, nesses cubículos, construir sua própria existência e até sustentar famílias inteiras, em contraste gritante com as casas amplas onde trabalham, dotadas de múltiplos cômodos e conforto.
A comparação inevitável com as senzalas, feita pela própria diretora, amplia a reflexão. Não se trata apenas de arquitetura, mas de mentalidade. A lógica de que o trabalhador deve agradecer pelo mínimo, como se o descanso fosse uma concessão generosa, revela a permanência de um pensamento escravocrata ainda profundamente naturalizado. Nesse ponto, o documentário alcança uma das suas maiores potências, que é estabelecer um diálogo entre passado e presente, conectando práticas coloniais ao cotidiano contemporâneo.
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Karol não se restringe a um único cenário. Ela percorre diferentes cidades e centros urbanos, revelando nuances da vida de suas protagonistas. Cada depoimento carrega uma história singular, mas todas se encontram na linha comum do abuso, da exploração e da invisibilidade social. Ao mesmo tempo, a diretora retorna constantemente à sua própria trajetória, costurando memórias de filha com o percurso da pesquisa. O resultado é um filme que mescla denúncia coletiva e catarse pessoal. A raiva, a vergonha e a exclusão que antes pareciam incompreensíveis ganham nova dimensão quando revisitadas à luz da maturidade.
O grande mérito do documentário está na forma como Karol cria um espaço de diálogo íntimo. As entrevistadas falam como se estivessem em conversa com uma amiga, resgatando memórias de maneira franca, sem a rigidez que muitas vezes os registros documentais impõem. Dessa atmosfera surgem relatos de dor e abuso, mas também de sonhos interrompidos e desejos nunca realizados. Rosarinha, por exemplo, confessa o sonho de ser professora infantil, desejo que nasceu do gosto por cuidar de crianças, mas que jamais pôde se concretizar.
Entre histórias de aparente resignação e lembranças brutalmente violentas, o filme escancara o absurdo da normalização da exploração. Algumas narrativas chegam a soar tão chocantes que parecem ficção. Cris, por exemplo, relembra ter trabalhado para uma pastora que, sob a justificativa de devoção religiosa, descontava automaticamente o dízimo de seu salário.
Como se isso não bastasse, a relação se agravou quando a patroa, após “acolhê-la” com a filha em casa, passou a controlar a convivência entre mãe e filha. O desfecho é aterrador e muda para sempre a vida da mãe e da filha. Ao relatar a história, Cris mistura dor e resignação, expondo não apenas a crueldade da patroa, mas também o quanto a naturalização do abuso se enraíza no cotidiano dessas mulheres.
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Apesar do peso das memórias, há também momentos de respiro, em que as protagonistas compartilham conquistas, ainda que modestas diante da magnitude das injustiças. Marcelina é um exemplo. Aposentada precocemente em relação às colegas, ela fala com orgulho de suas vitórias. Sua fala não apenas registra vitória pessoal, mas resgata a memória de lutas coletivas, como a aprovação da PEC das Domésticas em 2013, que ampliou os direitos trabalhistas da categoria. Marcelina reflete sobre a importância da conquista não apenas para si, mas para todas as mulheres que ainda lutam pelo mínimo de dignidade.
O documentário, assim, se constrói sobre um equilíbrio delicado entre denúncia e humanização. O olhar da diretora é crítico, mas também compassivo. A câmera não se limita a registrar dores; ela também legitima sonhos, afetos e subjetividades. Cada relato revela como o trabalho doméstico no Brasil ainda carrega marcas profundas da escravidão.
Há, no entanto, algo que torna a obra ainda mais especial: a presença invisível, mas constante, da mãe da diretora. Mesmo ausente das gravações durante grande parte do filme, ela atravessa o filme como catalisador da narrativa. Ao final, o documentário parece funcionar como um gesto de reconciliação. Karol não apenas denuncia a realidade de milhares de mulheres como sua mãe, mas também se reconcilia com suas próprias feridas.
Com depoimentos íntimos e direção sensível, Aqui não entra luz expõe a continuidade de práticas exploratórias travestidas de normalidade, Karol Maia nos obriga a questionar os espaços que habitamos, os privilégios que naturalizamos e as vidas que seguem sendo tratadas como descartáveis. Mais do que uma denúncia social, é também uma obra profundamente humana, que encontra se fortalece da potência de suas protagonistas.
Filme visto durante a cobertura do 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025.