Xingu à Margem
Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Xingu à Margem

A realidade dos ribeirinhos pós Belo Monte é tema de documentário emocionante - mas que incomoda

por Paulo Ernesto

Xingu à Margem começa com imagens impactantes de indígenas em confronto contra a construção de Belo Monte, denunciando o aprisionamento do rio Xingu, o que promete amplitude e conflito. No entanto, o documentário logo decide seguir por um caminho mais íntimo, o dos ribeirinhos, invisíveis à beira da narrativa oficial.

É nesse ponto que o filme desperta maior curiosidade ao revelar uma realidade pouco retratada, marcada por deslocamentos forçados, desconfiança entre vizinhos e famílias divididas por indenizações nunca recebidas. A figura central é dona Raimunda, uma mulher carismática, combativa e de uma retórica que oscila entre a denúncia política e a poesia. Sua presença domina a tela, seja em relatos de quando foi líder comunitária e parteira, seja ao refletir sobre a devastação social deixada pela barragem.

O documentário mostra como as indenizações, supostamente pagas apenas aos povos indígenas, geraram divisões impactantes entre os ribeirinhos. Raimunda, que antes era uma liderança comunitária respeitada, acabou isolada ao tentar alertar a população sobre os riscos. Sua narrativa é carregada de dor e lucidez. Em uma cena marcante, enquanto lava roupas herdadas dos trabalhadores que derrubaram a floresta, ela reflete que “usa as roupas daqueles que os despiram, para poder sobreviver”.

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Raimunda é retratada como uma mulher que ainda carrega em si todas as características que a tornaram uma liderança. Sua consciência sobre a força popular e sobre o modo como o governo atua reforça a percepção de que muitas promessas de reparação jamais se cumpriram, em parte pela desunião das próprias comunidades. Ao mesmo tempo, ela mostra como sua vida e a de sua família tiveram de ser reconstruídas quase do zero, sem garantias de futuro, mas sempre mantendo uma postura de resistência e inspiração para os que a cercam.

Outros depoimentos ampliam o retrato da tragédia. Jovens relatam a depressão generalizada e o aumento dos casos de suicídio entre conhecidos. O abandono, a precariedade dos auxílios governamentais e o envelhecimento precoce da comunidade escancaram os custos humanos da obra.

Vale destacar que, embora o filme se inicie com imagens de confronto que remetem a um contexto político maior, ele não se aprofunda nos bastidores da construção de Belo Monte. O documentário não discute a fundo as estratégias do governo federal, os acordos firmados nem explora os números grandiosos da obra. Essa ausência pode ser sentida pelo espectador que não acompanha de perto o debate sobre o setor energético no Brasil.

O filme parte do pressuposto de que tais informações já são conhecidas, preferindo mergulhar diretamente nos efeitos sociais e emocionais do projeto. Essa escolha, embora limite o alcance do registro, também o diferencia de outras produções: o foco não está na usina em si, mas no que ela causou às comunidades que ali vivem.

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Estética e cotidiano

Há momentos de muita beleza e contemplação do convívio familiar e das tarefas do dia a dia, assim como da devastação causada por centenas de árvores submersas. Tudo é apresentado com naturalidade. É nesse aspecto que o documentário revela maior força, ao mostrar um cotidiano que segue em frente, mesmo profundamente modificado pela construção de Belo Monte.

A fotografia é um dos pontos altos da obra. Há uma beleza agridoce nas imagens que captam a destruição: árvores mortas, águas represadas, casas abandonadas, ao mesmo tempo em que revelam a dignidade da vida que insiste em permanecer. Essa contradição é explorada com delicadeza, permitindo que o espectador perceba poesia até nas atividades mais simples, como comer, lavar roupas ou pescar.

Porém, a escolha por repetir e alongar depoimentos, sem uma montagem mais dinâmica dessas falas, enfraquece potência a narrativa. A linguagem, que poderia ser mais concisa, por vezes se arrasta e dilui o impacto de falas grandiosas. A sensação é a de que o filme tem receio de selecionar quais histórias são mais essenciais nesse recorte.

Limites da narrativa

Um dos pontos mais notáveis é a ausência de vozes externas à comunidade. O espectador não ouve representantes do governo, da empresa responsável pela obra ou de órgãos públicos que pudessem fornecer contrapontos. Isso não diminuiria o relato dos ribeirinhos, mas o enriqueceria, permitindo confrontar discursos oficiais com a realidade cotidiana. Assim, o filme se restringe ao âmbito da denúncia pessoal, quando poderia se expandir para uma denúncia mais sistêmica.

Se tivesse ampliado o olhar para além de Raimunda e sua comunidade, conectando essas experiências às de outros grupos afetados por Belo Monte, o documentário poderia alcançar um impacto coletivo ainda mais forte. Faltam peças essenciais para compreender a magnitude do problema, e essa ausência deixa a impressão de um quebra-cabeça incompleto.

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Passado e futuro

Mais do que um retrato de um presente doloroso, “Xingu à Margem” funciona como uma forma de preservar uma memória em risco de desaparecer. Sem esse registro, histórias de perdas e resistências poderiam ser apagadas ou distorcidas pela narrativa de progresso. Nesse sentido, o filme cumpre um papel fundamental ao eternizar a experiência dos ribeirinhos.

O valor desse gesto vai além do cinema. Ele inscreve na memória coletiva as vozes que não aparecem em relatórios oficiais. Cada fala de Raimunda e dos outros ribeirinhos descrevendo suas angústias serve como arquivo de um tempo e de uma luta. Esse material pode se tornar ferramenta pedagógica, política e histórica para que futuras gerações compreendam o preço real de obras de grande porte como Belo Monte.

Quanto ao futuro, o que prevalece é a sensação de abandono e estagnação. Não há políticas consistentes para reparar danos ou garantir dignidade às famílias deslocadas. Ainda assim, a voz de Raimunda carrega esperança: mesmo diante do descaso, ela insiste que seguirão lutando pelo que acreditam ser justo. Essa tensão entre resistência e desesperança dá ao filme sua força mais humana. É nesse paradoxo que a obra ecoa a poesia da narradora, que fala sobre um povo que perdeu quase tudo, mas que não abre mão de continuar existindo.

O efeito no espectador

Ao expor o cotidiano dos ribeirinhos, o documentário revela como comunidades inteiras permanecem reféns de grandes empresas e de um Estado que as ignora. Ao mesmo tempo, ressalta a importância da união popular como único caminho possível para enfrentar as consequências devastadoras de obras dessa magnitude.

Xingu à Margem passou pela mostra competitiva de longas-metragens no Festival de Cinema de Brasília e deve percorrer outros espaços, gerando discussões sobre os impactos de Belo Monte. O filme emociona e incomoda, transformando memória em denúncia e mobilização. Obras como esta, cumprem a função vital de dar visibilidade àqueles que foram deixados literalmente à margem da história.

Filme visto durante a cobertura do 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025.

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