Inspirado em uma história real, A Voz de Hind Rajab mergulha no visceral para nos tornar cúmplices do assassinato de uma jovem palestina
por Rafael FelizardoPense na seguinte situação: você está em uma sala de cinema lotada, em um festival de renome mundial, assistindo a um filme cultuado. Após o descer dos créditos, se a obra em questão for apreciada pela maioria, o normal é que os espectadores debatam sobre o que acabaram de ver - e dependendo da cidade, aplausos poderão ser ouvidos. Com A Voz de Hind Rajab, por mais que não haja dúvida sobre a qualidade do longa-metragem, tudo o que pôde ser ouvido foi um silêncio sepulcral.
Dirigido por Kaouther Ben Hania, A Voz de Hind Rajab conta a história real - com algumas liberdades criativas - de uma jovem palestina que foi morta por tropas israelenses enquanto viajava com a família pela Faixa de Gaza. A trama ambienta o público em mais um episódio de uma das maiores crises humanitárias das últimas décadas, jogando sobre nós o papel de cúmplice em uma tragédia arrebatadora.
No enredo, atores como Amer Hlehel, Clara Khoury e Motaz Malhees interpretam os funcionários da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino, uma organização humanitária que atua na Cisjordânia, na Jerusalém Oriental e na Faixa de Gaza. O filme acompanha esses personagens durante uma ligação telefônica de mais de três horas com Hind Rajab, uma menina de seis anos que ficou escondida em um carro destruído, ao lado de familiares mortos, após um ataque de soldados israelenses, em Gaza.
Ao longo de sufocantes uma hora e meia de duração, A Voz de Hind Rajab tece um retrato visceral do evento ocorrido no dia 29 de janeiro de 2024. Nele, Omar trabalha sob a supervisão do chefe, Mahdi, atendendo à chamadas telefônicas de socorro de diferentes partes da Palestina. É durante uma dessas ligações que ele entra em contato com Hind Rajab, desenvolvendo-se, a trama, a partir daí.
Como dito anteriormente, de maneira crua e direta, o longa nos situa na posição de cúmplices do assassinato da menina palestina. Por mais que não tenhamos participado diretamente desta tragédia, torna-se difícil não se sentir impotente em face de todo o ocorrido, principalmente quando temos a certeza de que episódios como este não são meros casos isolados.
Nos últimos anos, a sétima arte produziu documentários de excelência responsáveis por retratar o genocídio praticado na Palestina, como Sem Chão, Cinco Câmeras Quebradas, Nascido em Gaza e outros. Títulos como esses foram de suma importância para levar à superfície recortes do conflito - e por mais que não esteja sob a luz do gênero, A Voz de Hind Rajab também deixa a sua contribuição. Portador de uma originalidade elogiável e uma estrutura singular, a produção mescla dramatização e realidade para apresentar o seu relato.
MBC Studios
Em uma de suas peculiaridades, A Voz de Hind Rajab utiliza gravações reais das ligações realizadas, alcançando um efeito completamente devastador. Assim que a voz da jovem surgiu em tela, senti um pesar no peito como nunca antes havia sentido dentro de um cinema - e pelas reações à minha volta, a emoção não foi exclusiva. No decorrer do filme, ainda é possível escutar sons de tiro ao fundo da conversa com a menina, o que deixa toda a situação ainda mais excruciante.
Se a tensão neste ponto não fosse o suficiente, ela é alimentada por uma falta de trilha sonora que torna tudo mais cru, somada a uma câmera nervosa que ataca o emocional de forma efetiva. A ambientação do longa também é feita toda em um mesmo ambiente, aumentando a sensação de urgência à medida que a trama evolui.
Poucos são os espaços para respiro deixados por Kaouther Ben Hania, onde o público, se não atormentado pela voz de Rajab, se vê mergulhado na gradual tensão entre os funcionários da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino. De fato, existe um ponto onde um mecanismo de defesa emocional faz com que você se acostume a todo o caos em tela, mas é aí que o filme lhe apresenta uma imagem real de Hind Rajab através de uma foto. Atrelar o áudio urgente à imagem de uma jovem sorridente tem um efeito avassalador.
MBC Studios
Apesar de tudo o que aqui foi dito, acredito que A Voz de Hind Rajab é o tipo de obra que deveria ser vista por todos. De difícil digestão, o longa causa um incômodo não tão comum à indústria cinematográfica - e é exatamente nesse sentimento que Kaouther Ben Hania se apoia. Por vezes, sair da zona de conforto é necessário para abrir nossos olhos, principalmente quando nos encontramos em um nocivo estado de dormência, cotidiano.
Ouso dizer que o filme transcende em parte o debate Israel x Palestina, mergulhando na impotência humana em face de questões prioritárias. A todo o momento, presenciamos em tela um sistema fraturado que facilita o acontecimento de tragédias como esta, perpetuado por agentes invisíveis que ressoam longe dos nossos olhos.
Por mais que o espectador entre em uma sala escura já sabendo do desfecho, o caminho até ele é o elemento mais importante de A Voz de Hind Rajab, uma produção que, sem sensacionalismo, enfrenta a dor para empregar a sua mensagem. O trabalho sólido realizado pelo elenco é responsável por reforçar o soco emocional almejado - atores que personificam indivíduos comuns forçados a circunstâncias extraordinárias.
E para finalizar, por mais que a sétima arte teime em nos estufar com uma visão simplista de que no final tudo dará certo, a vida nos mostra que as coisas funcionam de forma muito mais complexa, jogando, muitas das vezes, um copo gelado de realidade em nosso rosto.
*O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2025.