Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Até Os Ossos

Pertencimento e visceralidade do amor canibal

por Bruno Botelho

O diretor Luca Guadagnino gosta de explorar temáticas relacionadas com a juventude em suas produções, com destaque para o filme Me Chame Pelo Seu Nome (2017) e a minissérie We Are Who We Are (2020). Em Até os Ossos (2022), Guadagnino retoma esse tema, e também sua parceria com o ator Timothée Chalamet, com uma história de amor provocativa e visceral que se apresenta como um terror canibal.

Qual é a história de Até os Ossos?

Até os Ossos é baseado no romance homônimo escrito pela autora Camille DeAngelis, publicado originalmente em 2015. Na história, acompanhamos a personagem Maren Yearly (Taylor Russell), uma jovem que deseja ser alguém que as pessoas admiram e respeitam. Quando sua mãe a abandona no dia seguinte ao seu aniversário de dezesseis anos, Maren vai à procura do pai que nunca conheceu e encontra muito mais do que esperava ao longo do caminho.

O amor floresce entre uma jovem à margem da sociedade e um caminhante isolado, Lee (Timothée Chalamet), enquanto eles embarcam em uma odisseia obscura de três mil milhas pelas estradas secundárias dos Estados Unidos. No entanto, apesar de seus melhores esforços, todos os caminhos levam os dois de volta a seus passados ​​aterrorizantes e a uma posição final que determinará se o amor deles pode sobreviver às diferenças.

Pertencimento e amor entre dois jovem excluídos na história de Até os Ossos

Com roteiro adaptado de David Kajganich, o filme de Luca Guadagnino, indicado ao Oscar anteriormente por Me Chame Pelo Seu Nome, está mais interessado em mostrar uma história de amor entre dois jovens sobrevivendo à margem da sociedade. Desta forma, temos uma narrativa essencialmente sobre descobrimento envolvendo os personagens interpretados por Taylor Russell e Timothée Chalamet, em busca de sua própria identidade, sobre suas características biológicas como Devoradores que estão relacionadas com sua necessidade de carne humana, além de suas relações amorosas que vão florescendo ao longo da trama – quase como uma autorreflexão e meditação sobre sua personalidade. 

Levando em conta essas questões, Guadagnino mescla diferentes gêneros em sua direção, com elementos de romance e terror que caracterizam a produção como uma fábula social. Isso acontece principalmente pelo canibalismo estar relacionado com todas as questões de descobertas da própria identidade, culminando até mesmo no horror mais explícito pela visceralidade das relações interpessoais, amorosas e sexuais.

Esse encontro funciona como um lugar de pertencimento para Maren e Lee, que são dois jovens excluídos pelas suas condições, que os colocam socialmente distantes, sendo obrigados a viver escondidos e sobrevivendo na estrada – características da adaptação que a relacionam bastante com outras obras de terror que tratam sobre identidade, como é o caso de Os Garotos Perdidos e Quando Chega a Escuridão, duas histórias sobre vampiros que se relacionam bastante com a forma que o canibalismo é tratado no filme. Por isso, Até os Ossos é uma espécie de road movie sombrio que traça comentários relevantes, sendo ambientado durante o colapso social causado durante a presidência de Ronald Reagan, na década de 80.

Considerando o percurso pelas estradas dos Estados Unidos, a cinematografia de Arseni Khachaturan é um dos destaques da produção conseguindo ressaltar a beleza de cada região, casando com o romance dos protagonista, ou até mesmo retratar o clima opressor associado aos perigos. Somado a isso, não posso deixar de mencionar a trilha sonora composta por Trent Reznor e Atticus Ross, que tem a capacidade de mesclar perfeitamente a suavidade do folk para embalar a conexão e romance entre os protagonistas e o uso mais pesado de sintetizadores para representar as ameaças que eles encontram ao longo do caminho. 

Os protagonistas Taylor Russell e Timothée Chalamet representam bem a visceralidade do amor, mas Mark Rylance rouba a cena

Muito da fama de Timothée Chalamet em Hollywood veio pelo sucesso do romance Me Chame Pelo Seu Nome em 2017 e, anos depois, o ator retoma sua parceria com Luca Guadagnino em Até os Ossos. Tanto Chalamet quanto Taylor Russell estão bem em seus papéis como jovens desajustados, mas funcionam principalmente pela química que colocam no romance entre seus personagens. É interessante como eles caminham nessa linha tênue entre o horror canibal e descoberta do amor, mais ainda quando a visceralidade e tensão no desenvolvimento de sua relação os fazem confrontarem suas perspectivas de mundo. 

Mesmo com essas duas atuações poderosas, o ator Mark Rylance é quem definitivamente rouba a cena no filme no papel de Sully, um dos Devoradores que aparecem na história e se caracteriza pela sua abordagem imprevissível, ameaçadora e até mesmo desconfortável por causa de seu interesse repentino pela personagem de Russell. É uma das performances mais interessantes da temporada e não se surpreenda se o vencedor no Oscar aparecer em premiações. Outro que também dá as caras, de maneira pouco usual, é Michael Stuhlbarg, como outro excêntrico canibal. Kendle Coffey, André Holland, Ellie Parker, Madeleine Hall, Christine Dye, Sean Bridgers e Anna Cobb são outros atores presentes no elenco.

No final das contas, Até os Ossos é um filme pertubador? Por falar sobre canibalismo, muitas pessoas se perguntam sobre o que esperar de terror na trama. E sim, a produção conta com cenas sanguinolentas e até mesmo nojentas envonvendo práticas canibais, mas a narrativa proposta pelo diretor Guadagnino não foca tanto nesses momentos, mas no romance e relação entre Chalamet e Russell – e, consequentemente, como eles vão lidando com as situações perigosas e adversidades que aparecem pelas estradas.  

Até os Ossos é uma história de amor nada convencional e por isso mesmo pode ser um desafio para algumas pessoas, especialmente pelo seu ritmo lento, por vezes contemplativo e arrastado, em diversas cenas. Mas, no geral, o longa-metragem é interessante pela abordagem de temáticas como descobrimento e pertencimento em uma sociedade repressora – e nada mais provocativo do que um amor canibal entre marginalizados em meados dos anos 80. Luca Guadagnino sabe, como poucos diretores da atualidade, trabalhar com tematicas relacionadas à juventude, então seus atores protagonistas Taylor Russell e Timothée Chalamet são objetos perfeitos para esse estudo profundo e íntimo sobre identidade e amor, que são elementos centrais para essa interessantes mistura de romance e terror violento.