Existem muitos filmes responsáveis por marcar uma geração. Para além do cinema de super-heróis e longas que ganharam o mainstream durante temporadas de premiações, histórias específicas que se destacam em uma enxurrada de lançamentos merecem ser lembradas. Com 10 anos recém-completados, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é um destes projetos que iluminaram a juventude de milhares de brasileiros e ainda hoje consegue evocar grandes memórias de uma época de mudanças.
A trama acompanha a trajetória de Leonardo (Ghilherme Lobo), um adolescente cego, que tenta lidar com a mãe superprotetora ao mesmo tempo em que busca sua independência. Quando Gabriel (Fabio Audi) chega na cidade, novos sentimentos começam a surgir em Leonardo, fazendo com que ele descubra mais sobre si mesmo e sua sexualidade.
10 anos de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho: Marco do cinema LGBTQIAP+ brasileiro, filme de Daniel Ribeiro preserva doçura da descobertaHá cerca de um mês, o longa completou dez anos de sua estreia nos cinemas brasileiros, seguido de sua incursão no circuito comercial de países como Alemanha, México, Estados Unidos, França, Colômbia e muitos outros. Após fazer um breve balanço sobre a primeira década do filme nacional, o AdoroCinema conversou com algumas pessoas que estiveram nas sessões de 2014 para saber como o projeto impactou suas vidas e como a relação com a trama é vista atualmente.
Impacto no público de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho
Dirigido por Daniel Ribeiro a partir do curta Eu Não Quero Voltar Sozinho, distribuído quatro anos antes do longa-metragem chegar aos cinemas, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho teve uma trajetória meteórica no cinema nacional.
Ao trazer uma nova perspectiva para o estilo coming of age, adicionando dois protagonistas gays em um lugar onde a heterossexualidade era o padrão, o cineasta foi a entrada de muitas pessoas ao cinema queer. Enquanto existe toda uma cinematografia LGBTQIAPN+ do passado, que optava por apresentar apenas o lado trágico de algumas histórias, o filme de 2014 é sempre lembrado por sua doçura e sua visão positiva sobre a vivência de personagens gays.
O AdoroCinema coletou relatos de dez pessoas, de diferentes cidades, profissões e idades, para entender o impacto da história na vida do público ao longo deste período em que o país e a vida de todos mudou consideravelmente. Existem muitas histórias de aceitação, lembranças que abraçam um ente querido, lutas para garantir a exibição do filme, relatos sobre a maneira como o Hoje Eu Quero Voltar Sozinho foi fonte de inspiração e pontos de reflexão a partir de contrastes emergidos pelo decorrer do tempo.
"Uma importância enorme pra minha aceitação"
Provavelmente o que mais se ouve quando o filme chega nas rodas de conversa é como ele foi importante para que muitos compreendessem questões sobre a própria sexualidade. É o caso de Eduardo Silva, 37. “Quando vi o filme ainda não tinha ‘me assumido’, já tinha visto o curta, e então foi muito bom testemunhar ver esse amor jovem e puro surgindo dessa amizade na tela grande”, diz o coordenador de redes sociais. “Hoje em dia eu tenho ainda um carinho muito grande pelo filme, e acho que é excelente pra apresentar para a galera mais jovem.”
Leonardo Brandão Nogueira, 28, também está no grupo daqueles que estavam na fase de aceitação da sexualidade na época em que o projeto entrou em cartaz. “Foi de uma importância enorme pra minha aceitação assistir a um filme que trata sobre a sexualidade de forma sensível e tão sincera”, afirma o auxiliar de escritório. “Sempre que posso retorno ao filme e as minhas sensações, ainda que mais maduro, são as mesmas. Me sinto representado ainda de uma forma leve e natural, coisa que muitas vezes não vemos em filmes LGBTQIAP+”.
"Não sabíamos se o filme ia chegar..."
Para o designer Ivan Basten Martins, 31, a lembrança de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é acompanhada de uma pequena batalha para que o filme chegasse em sua cidade. “Lembro que estava muito ansioso pelo filme, depois do sucesso do curta. Não sabíamos se ia chegar em Manaus, já que era bem difícil o lançamento de filmes alternativos por lá na época”, relembra ele ao citar uma movimentação da comunidade LGBT local para o lançamento, com direito a abaixo-assinado, inclusive.
“Conforme a Vitrine Filmes ia anunciando as cidades onde o filme ia ser exibido e Manaus não aparecia na lista, era uma aflição enorme”, explica. “Até que finalmente depois de um tempo e depois do barulho e do chororô que fizemos, o Cinépolis anunciou que o filme ia passar lá, no Shopping Ponta Negra. Foi um sentimento de vitória muito grande e felicidade por ter conseguido movimentar o pessoal pra fazer acontecer.”
Dez anos depois, o artista tem um carinho muito grande pelo filme. “Todo mundo já foi jovenzinho a fim do carinha da escola, já sofreu com preconceito, já sentiu esse frio na barriga de ‘será que ele gosta de mim?’. O filme dá um abraço gostoso na gente, lembra de onde a gente veio e como a gente era. É com certeza um filme que paro para assistir se estiver passando”, conclui.
"Impacto enorme em tudo o que escrevo"
Aos 33 anos, Vitor Martins se assustou ao reparar que já se passaram 10 anos desde que se sentou na sala escura ao lado de seu namorado, Rafa, com quem está junto até hoje. “Minha lembrança de assistir Hoje Eu Quero Voltar Sozinho nos cinemas é tão vívida que até me assustei ao perceber que já se passaram 10 anos”, disse o escritor que já ansiava pelo filme após ter visto o curta “um milhão de vezes” no Youtube.
“Lembro da felicidade de ver o amor gay adolescente sendo retratado na tela de maneira tão bonita e inspiradora. De segurar na mão do meu namorado durante a sessão e me sentir sortudo por estar vivendo aquilo ali”, lembra o autor de Um Milhão de Finais Felizes, Quinze Dias e Se a casa 8 falasse.
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas foi injustiçado? 6 motivos por que filme merecia ganhar Oscar de Melhor AnimaçãoCuriosamente, o filme reverberou em sua vida a ponto de influenciar suas obras literárias. “Enquanto escritor que também conta histórias de amor gay adolescente, o trabalho do Daniel Ribeiro teve um impacto enorme em tudo o que escrevo. Continua tendo, na verdade”, destaca.
Admiro a atemporalidade de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Revi recentemente (menos de um ano atrás) e constatei como o filme continua atual, relevante e, sendo bem sincero, tão bonito quanto da primeira vez que assisti.
Outra história de amor que se assemelha à experiência de Vitor é do farmacêutico Júlio César de Araujo Vanelis Soares, 33, e do criador de conteúdo Fábio Cruz, 32, que estavam em seu primeiro ano de namoro na época em que assistiram a história de Leonardo e Gabriel juntos. ”O filme marcou muito, tanto pelo que ele representou pra gente naquele momento, quanto pela história em si. Não era muito comum naquela época ver filmes com histórias de romance adolescente LGBT, não com essa leveza que o filme trazia”, disse ele ao encarar hoje o projeto como “um marco do cinema LGBT brasileiro”.
Já Fábio ficou encantado com a forma como o filme se apoia em alguns contrastes para contar uma história de amor, levando em consideração tanto as diferenças entre os protagonistas quanto às dificuldades de um relacionamento entre dois garotos em 2014.
Sua relação atual com o longa, além de uma história com a mãe contada mais à frente neste texto, é de carinho e curiosidade:
Minha única vontade é que tenha pelo menos o [Hoje Eu Quero Voltar Sozinho] 2 para ver como eles estão hoje. Eu não sei se é pedir demais uma continuação para entender como foi o desenvolvimento, porque é uma história envolvente, é uma história que faz você querer mais.
"Era legal ver pessoas como eu vivendo histórias bonitas"
A jornalista Viviane Andrade, 27, também enxerga a potência do filme no recorte otimista dado a este tipo de narrativa. “Eu tinha 18 anos e estava me aceitando sexualmente. Eu já conhecia o curta e tinha um carinho enorme por ele, vi inúmeras vezes porque gostava de ver como retratava LGBTs de uma forma mais fofa do que o normal. Geralmente são histórias tristes, de luta, de superação e, sei lá, cansa.”
“Quando vi o filme, fiquei com medo deles inserirem demais a questão do preconceito e acabar perdendo a fofura do curta, mas não foi o que aconteceu. Era legal ver pessoas como eu vivendo histórias bonitas. Esse filme tem uma memória muito afetiva pra mim. Ele não é perfeito, mas foi uma luz na possibilidade de poder viver um amorzinho de verão ao som de Belle e Sebastian”, explica.
Viva o amor! 25 casais LGBTQIA+ marcantes do cinemaO desenhista Leonardo César das Neves dos Santos teve uma trajetória semelhante aos demais. “Eu tinha 19 anos! Tinha acabado de sair do colégio e não tinha tido nenhuma experiência sexual. Como eu sou bissexual e não me entendia, me fechei do mundo e não me permiti ter nenhum romance com ninguém por puro medo. E então assisti ao filme”, escreveu ele.
“Terminei sabendo que queria viver algo parecido e me entendendo um pouco mais. Acredito que foi o nosso 1º Heartstopper e alcançou LGBTs pelo Brasil que nunca tinham visto uma representação tão doce e sem tragédias, algo que precisávamos muito!”, destacou.
"Hoje acho que tenho um distanciamento real do filme"
Embora muitos tenham mantido a relação com o filme desde que ele chegou aos cinemas, há também quem passou a enxergar a trama de outra forma ao longo destes 10 anos. Carlos Henrique Camillo da Silva tinha 21 anos quando Hoje Eu Quero Voltar Sozinho chegou aos cinemas, em uma “fase bem inicial de exploração da minha sexualidade”, lembra.
“Quando assisti, fiquei maravilhado e esperançoso a respeito da possibilidade de ser amado, desejado, aceito e adentrar num relacionamento saudável. Revi mais 4 vezes o filme. Levei amigos e também fui sozinho - e a cada vez amava mais”, diz o cientista de dados, que passou a adicionar diversas músicas de Belle & Sebastian na playlist e aumentar a sua relação com David Bowie.
9 séries parecidas com Heartstopper para quem amou o romance teen da Netflix“Mas hoje acho que tenho um distanciamento real do filme. Ele não me representa mais. Não condiz com minha realidade. Acho que o filme é muito focado num padrão de corpos e relações homossexuais bem restritos e idealizados”, explica. “A primeira vez que assisti foi no Reserva Cultural [em São Paulo] e eles colocaram recortes de jornais sobre os filmes em exibição num quadro na entrada do cinema. A manchete da Folha de S. Paulo era ‘O filme gay pra hetero ver’. No começo eu achava super inovador e [que] ia contra a homofobia, mas hoje vejo que o filme só foi aplaudido pela comunidade heterossexual porque ele vende um ideal perfeito de sexo, sexualidade e conduta de gênero.”
“São corpos brancos, padrões, heteronormativos que não expressam seu amor de forma aberta, uma vez que já foi situado que o meio em que vivem é majoritariamente à favor de seu relacionamento”, reflete. “Eu como um corpo preto, queer e afeminado não sou representado e ainda sou descartado pelo filme."
O imaginário vendido é muito platônico e talvez funcione para gays jovens, brancos, padrões e de classe média alta, mas esse filme só está aí para agregar ao ideal do cinema gay de massa quais corpos são atraentes, relevantes e dignos de serem retratados positivamente.
Quem sofre no cinema pela marginalização e a falta de amor não são os protagonistas de Hoje Não Quero Voltar Sozinho ou Com Amor, Simon, mas sim os de Moonlight ou Madame Satã”, conclui.
Embora mantenha seu relacionamento com o longa, Leonardo Santos também acredita que o filme poderia ter outras abordagens e mais inclusão em seu elenco. “Hoje em dia eu continuo amando o filme. Ele continua no meu top 5 filmes brasileiros sem nenhuma vergonha ou demérito. Podia ter mais personagens negros como protagonistas? Sim! Acho que se fosse refeito hoje em dia deveriam ter mais cuidado na escalação do elenco. O mesmo para a escalação de algum ator deficiente visual já que isso é um tema importante na trama e não vemos ninguém do elenco de fato com essa condição”, explica o ator.
"Sair do armário para minha mãe"
Ao fim desta série de depoimentos, voltamos ao carioca Fábio Cruz. O comunicador teve uma experiência marcante com uma segunda exibição do filme, desta vez dentro de casa. O influenciador se entendeu gay “muito tarde” e teve dificuldades com sua mãe, que “não aceitava muito e era resistente” com a questão.
Após dar o play no filme na sala de sua residência, algumas coisas mudaram. "Lembro dela assistir esse filme comigo e se emocionar, chorar e achar lindo. Para mim foi meio que um abraço. Eu me emocionava com o filme, mas ver a minha mãe se emocionar com uma história de romance que circula o meu universo era como se ela me permitisse, como se ela entrasse no meu mundo e entendesse o que eu sinto, como sinto e como eu amo”, relatou ele.
“Este filme teve o papel de me conectar mais com a minha mãe. Lembro dela chorar e dizer que me amava no final, então criou-se um elo muito lindo entre nós a partir desse filme”, finalizou.
Praia do Futuro, Flores Raras e outros filmes LGBTQ+ brasileiros para comemorar o mês do orgulhoVítor Manon, 31, também assistiu ao filme com a matriarca. "Na época do Dia das Mães, levei a minha mãe ao cinema. Ela fazia teatro na época, então era muito entusiasta do cinema brasileiro", contou ele ao AdoroCinema. "A gente começou a debater muito sobre o filme depois que acabou, sobre como era importante naquele momento um filme falando sobre o romance entre dois meninos. Isso acabou se tornando uma abertura para eu falar sobre minha homossexualidade, então foi literalmente o filme que me fez: sair do armário para minha mãe."
O fotógrafo estava interessado no longa desde a época do curta-metragem, além de ter uma amiga sua no elenco. "Ela faz uma personagem que é amiga dos meninos", disse. "Para além da representatividade que aquilo trazia, acho que me possibilitou pensar sobre o amor romântico de uma forma que talvez na época eu não conseguisse pensar e hoje eu entendo e consigo desdobrar nas minhas relações. Foi sempre um filme muito especial para mim."
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho está disponível nos catálogos da Netflix e do Telecine.