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    Existe um dilema em Assassinos da Lua das Flores: Por que Martin Scorsese escolheu um ponto de vista específico para contar a história?
    Giovanni Rodrigues
    Giovanni Rodrigues
    -Redação
    Já fui aspirante a x-men, caça-vampiros e paleontólogo. Contudo, me contentei em seguir como jornalista. É o misto perfeito entre saber de tudo um pouquinho e falar sobre sua obsessão por nichos que aparentemente ninguém liga (ligam sim).

    Há uma divisão sobre a abordagem da perspectiva dos personagens de Leonardo DiCaprio e Robert de Niro.

    Em 2019, Martin Scorsese terminou um rascunho do roteiro de adaptação do best-seller de David Grann, Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI, que se tornou seu mais recente sucesso de bilheteria, Assassinos da Lua das Flores. No entanto, essa versão era bem diferente, apesar do fato de ele já ter garantido a participação dos colaboradores de longa data Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, com um estúdio preparado para cobrir o orçamento de 200 milhões de dólares necessário para dar vida ao filme.

    Mas esse roteiro mudou, como pode ser visto no título original, já que as origens do FBI não são fundamentais para o filme. O filme opta por focar no casamento de Mollie Kyle (Lily Gladstone) e Ernest Burkhart (DiCaprio), no que pode vir a ser o "romance" mais sombrio que uma grande produção já viu.

    A (re)conquista do Ocidente a qualquer preço

    Mas será que é realmente um romance? Em vez disso, Assassinos da Lua das Flores é um bom complemento para Sangue Negro (2007) como uma contracrônica para qualquer visão ilusória do gênero faroeste, pois ambos tratam da ganância implacável que corrói os pilares dos EUA e do tipo de gente capaz do indescritível para atingir seus objetivos de expansão, só que, nesse caso, é uma história real em que o crime organizado e o preconceito racial estão presentes, de alguma forma levando a um genocídio silencioso de todo o povo Osage.

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    Por esse motivo, um dos pontos polêmicos na época da estreia foi o ponto de vista de Scorsese do lado branco, mais especificamente o personagem de Burkhart, que ainda é um dos perpetradores. Ele não só foi questionado pelos críticos, mas Christopher Cote, que trabalhou como consultor linguístico de Osage no filme, disse ao The Hollywood Reporter na estreia em Los Angeles que achava que os papéis deveriam ter sido invertidos, embora ele dê talvez a resposta mais válida para o problema.

    "Como Osage, eu realmente queria que esse filme fosse da perspectiva de Mollie e do que sua família vivenciou, mas acho que seria necessário um Osage para fazer isso. Acho que Martin Scorsese, por não ser um Osage, fez um ótimo trabalho ao representar nosso povo, mas essa história é contada quase da perspectiva de Ernest Burkhart e eles lhe dão essa consciência e mostram que existe amor. Mas quando alguém planeja assassinar toda a sua família, isso não é amor... isso não é amor. Isso não é amor, é muito mais do que abuso".

    Evitando o resistente complexo de salvador branco

    Há um elemento a ser levado em conta aqui: os personagens de Scorsese, pelo menos em seus filmes policiais, não são protagonistas para glorificar um estilo de vida.

    Certamente, em seus filmes sobre a máfia, Scorsese gosta de mostrar o lado mais atraente do outro lado, dos sem lei e da riqueza obtida por meios menos virtuosos, com aquelas montagens de fluxo de dinheiro de Cassino ou O Lobo de Wall Street, mas sempre há um ponto de queda em que a consciência se mostra implacável e em que o anti-herói se torna o vilão, para nos mostrar o lado sombrio dos atalhos. O final deprimente de O Irlandês é o exemplo mais devastador.

    Em Assassinos da Lua das Flores, os crimes não são executados nas sombras, mas em plena luz do dia. A característica mais marcante dos assassinatos é que o método é uma perversão farisaica: homens brancos se aproveitam da afabilidade dos índios para se casarem com mulheres que eles envenenam, a fim de tirar sua riqueza da terra próspera e do petróleo.

    É por isso que acho que o ponto de vista de Scorsese está certo ao enfocar o casamento típico, que acabou se tornando a engrenagem central e habitual de todo um sistema de engano implacável.

    Paramount Pictures

    Isso nos dá um vislumbre das dúvidas, misérias, falsidades e segundas intenções dos assassinos contemporâneos de Landru. Assim, aqui a parte que enfoca a investigação dos crimes pelo proto-agente do FBI Tom White não se traduz em uma típica história de salvador branco, mas deixa claro que os homens brancos estão no comando de quando e como as famílias Osage podem ser usadas ou mesmo salvas.

    Não há nenhum ato heroico, a usurpação e o deslocamento são feitos por meio de violência e opressão por homens brancos que reivindicam parte desse poder para si.

    Liberalismo ou xenofobia

    Vendo a maneira como os crimes são realizados, entendemos que o desequilíbrio econômico que é investido nessa área rica em relação ao resto da nação deixa esses criminosos desconfortáveis. E o filme sabe como estender esse ponto de conflito sentimental, sujo e pútrido, a um verdadeiro terrorismo nacional branco contra os poucos lugares onde outras raças prosperaram, com uma conexão inescapável com Tulsa, nesse caso com um noticiário pertinente da época que liga os dois casos.

    Assassinos da Lua fala de uma nação que prosperou por meio de engano, roubo, morte e corrupção de um sistema concebido a partir de um extermínio supremacista que se recusa a deixar espaço para a coexistência.

    Scorsese leva o que ainda é um crime verdadeiro sinistro clássico para seu próprio reino de exposição do crime organizado, mas o faz de uma perspectiva semelhante à da 1ª temporada de Fargo, em que acompanhamos a miséria de maridos covardes planejando crimes familiares movidos pela ganância.

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    Aqui também há ecos jornalísticos semelhantes aos de Em Nome do Céu e até mesmo pontos em comum com Ataque dos Cães ao vincular um gênero mitológico cheio de testosterona à fragilidade da masculinidade branca, que é o que torna as interrogações do conceito tão convincentes e subversivas.

    A falácia da coexistência

    É fundamental notar a facilidade de puxar as cordas do ponto de vista do culpado. Aqui, Scorsese é um bom aluno de Powell em A Tortura do Medo, e não de Hitchcock. Isso cria um realismo mais maduro, no qual as vítimas e os carrascos convivem diariamente e, mesmo no meio do julgamento, vemos o filho do principal líder carregando Millie de um lado para o outro.

    Essa proximidade é impensável para nós, mas é a chave para entender como aconteceu. Essa convivência aumenta a vulnerabilidade diante do crime, criando uma atmosfera de falsa calma.

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    Essa coexistência do mal mascarado nos torna parte da confiança sincera das famílias Osage, em vez de desenharmos antagonistas claros, embora a linha moral não seja de todo borrada. A chave é entender o clima de liberdade, a falta de regulamentação estatal e a dinâmica que eles geram, especialmente no aspecto racial e uma "permissividade" que é muito mais acentuada em estados tradicionalmente racistas.

    Outro detalhe que esconde essa falsa interracialidade, como esse casamento e essa genealogia, esconde outra vontade de eliminar a raça, como quando se questiona a cor da pele dos filhos e se pergunta qual deles pode se passar por branco.

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    Scorsese também expõe aqui as raízes da ansiedade da supremacia branca, muitas vezes enraizada no medo de não estar à altura, o mesmo medo que sustenta teorias da conspiração e alimenta obsessões em torno das taxas de natalidade racial. Mas, no fundo, ele está interessado em expor a consciência de seus personagens dominados pelo crime.

    Ernest não é inocente, ele não acredita no amor, mas se apega a Mollie e sua consciência começa a devorá-lo, seguindo o perfil de outros personagens de Scorsese, como Henry Hill em Os Bons Companheiros, que acabam em infernos pessoais.

    O inferno da culpa

    Aqui há um momento de grande altura cinematográfica em que vemos como o fogo devora a vizinhança da casa de Wiliam Hale para cobrar o seguro e, da perspectiva do quarto de Ernest, parece que ele está no inferno, como uma espécie de prenúncio em que Scorsese nos mostra seu estado mental, talvez no momento em que ele decide que não continuará com as injeções de insulina para sua esposa.

    Um detalhe que confirma a culpa católica como um dos grandes temas de todos os seus filmes. É interessante notar que o personagem começa a ir à igreja para cortejar sua pretendida.

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    Mollie continua sendo a observadora da trama, representando a posição de todos os Osages, e como, apesar de já ter visto que por trás de Ernest havia um "coiote" (que para os nativos representa a gula, o engano e a ganância), ela decide confiar nele, apenas para descobrir, em seu final desolador, o verdadeiro papel de Ernest na morte de sua família e como ele envenenou a sua própria esposa.

    Mas não vamos nos esquecer de que é ela quem consegue atrair a atenção do FBI e derrubar o primeiro dominó que acorda seu povo.

    A aparição final de Scorsese como produtor de rádio, narrando a essência do obituário de Mollie Burkhart, no qual ele reconhece que os assassinatos não foram mencionados, é a prova final de que o cineasta, em última análise, remete o filme a ela e, de alguma forma, sua exposição para a câmera é de humildade, apresentando o que vimos como uma forma de restituição tardia pelos crimes à cidade, que aparece nas imagens finais em uma celebração que serve como um pequeno ato de perdão.

    Assassinos da Lua das Flores
    Assassinos da Lua das Flores
    Data de lançamento 19 de outubro de 2023 | 3h 26min
    Criador(es): Martin Scorsese
    Com Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Robert De Niro
    Imprensa
    4,0
    Usuários
    4,3
    Adorocinema
    5,0

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