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    Máfia da Dor
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Máfia da Dor

    Existe cura para a ganância?

    por Aline Pereira

    A crise dos opioides é a bola da vez nos dramas hollywoodianos inspirados em acontecimentos reais. DopesickImpério da DorA Queda da Casa de Usher são só alguns dos exemplos de produções que vieram pouco antes de Máfia da Dor, produção original da Netflix cuja superficialidade se torna uma característica mais evidente quando comparada a outras obras recentes do gênero. Com Emily Blunt se estabelecendo cada vez mais como uma atriz versátil e magnética, temos uma produção salva pelo toque de realidade e pelo carisma de sua protagonista. 

    Máfia da Dor acompanha a história de Liza Drake (Emily Blunt), uma mulher que já tentou ganhar a vida de diversas maneiras e, quando a trama começa, a encontramos trabalhando em um clube adulto. Esgotada e com dificuldades para sustentar a filha, que precisa de um tratamento de saúde urgente, Liza encontra um salvador inusitado: Chris Evans interpreta um representante farmacêutico de ética duvidosa que oferece um emprego a ela. 

    Liza parece ter nascido para o trabalho de vendedora: inteligente, sociável e charmosa, a protagonista também é uma salvadora para seu novo chefe, Dr. Jack Neel (Andy Garcia), responsável por um analgésico potente cujas vendas começam a decolar – por meios completamente inescrupulosos e às custas da saúde (e da própria vida) de muitas vítimas. 

    O filme da Netflix se inspira em um artigo publicado pela New York Times em 2018, que mergulha no esquema bilionário de uma empresa farmacêutica. O principal método aplicado era a realização de conferências de medicina em que profissionais subornados convenciam os outros a prescrever o medicamento da própria empresa – uma substância potencialmente perigosa pelos altos riscos de vício e overdose. Em um dos momentos mais chocantes de Máfia da Dor, por exemplo, os executivos chegam à conclusão de que os médicos precisam dobrar a dosagem prescrita para que as vendas valham a pena – e assim os doutores fazem.  

    Cr. Brian Douglas/Netflix © 2023

    No longa, os representantes farmacêuticos se referem aos médicos como “meus médicos”, da mesma forma que médicos se referem a pacientes como “meus pacientes”. A ideia de que nossa saúde está servindo a interesses comerciais e de que existem médicos que se envolvem nisso é apavorante – e é do mundo real que Máfia da Dor tira suas principais qualidades.

    Uma boa história pode disfarçar um filme mais ou menos?

    Máfia da Dor é um filme com deslizes técnicos: de um elenco que não parece tão sintonizado quanto poderia a uma estrutura que abusa dos clichês em alguns momentos, mas a verdade é que a história propriamente dita talvez seja suficiente para entreter e não frustrar a maior parte do público. Saber que as situações absurdas retratadas são verdadeiras faz 50% do trabalho no quesito “interesse” (acho que Emily Blunt faz a outra metade) e o sentimento de desgosto e revolta “disfarça” a falta de originalidade do longa.

    “Nos deparamos com um vídeo de rap em que executivos de farmacêuticas se vestiam como remédios e faziam uma paródia, basicamente fazendo um rap sobre seus crimes”, contou o produtor Lawrence Grey em entrevista ao AdoroCinema. E de fato: há algo de hipnotizante em ver Chris Evans fazendo um rap sobre remédio, mas talvez o impacto venha muito mais do fato de saber que a cena aconteceu exatamente daquele jeito na vida real. O vídeo, inclusive, está disponível no YouTube com vendedores da farmacêutica Insys – sobre a qual trata o artigo original – fantasiados.

    Cr. Brian Douglas/Netflix © 2023

    Em Máfia da Dor, a ganância também é um vício

    “Dor é dor”, diz o criador do remédio que está no centro da trama de Máfia da Dor em uma declaração em que é fácil de se deixar levar: é lógico que ninguém quer sentir dor e que ótimo se houver um recurso capaz de resolver esse problema sem distinção – não importa se a dor vem de uma doença grave ou de um mal estar do dia a dia. Utilizar o “instinto” de não querer sofrer com o objetivo único de gerar lucro é de uma crueldade difícil de engolir e, assim como o medicamento, o longa nos apresenta a ganância também como um vício.

    A protagonista interpretada por Emily Blunt entra na história acreditando no discurso de que o objetivo do medicamento é melhorar a vida das pessoas e o lucro vem como uma feliz consequência. Ao longo da trama, no entanto, a prioridade muda: quanto mais dinheiro entra, maior a ambição. Logo, Liza se vê envolvida em um esquema que traz uma euforia e um senso de invencibilidade, mas, logo em seguida, a leva ao fundo do poço – é um vício. 

    É interessante acompanhá-la na jornada para entender como sair desse ciclo e como vencer o sistema que a engoliu. Enquanto vidas se perdem no caminho, há outras poucas pessoas se beneficiando (e muito), inebriadas pelo poder e por uma ostentação cada vez mais inacreditável. Festas, mansões e outros luxos começam a fazer parte deste império enquanto, na outra ponta, o médico de uma região vulnerável recebe a notícia de que um de seus pacientes teve uma overdose de analgésico.

    Netflix © 2023

    Nesse cenário caótico, Liza faz o papel de nos guiar e Emily Blunt se mostra como o grande trunfo do filme: temos uma atriz enérgica e dramática, cuja história é fácil de se conectar e entender – mesmo quando ela toma decisões questionáveis. Infelizmente, sinto que o mesmo não pode ser dito de seu co-protagonista Chris Evans. Nosso inesquecível Capitão América parece, talvez, um pouco plástico demais em um papel com pouca profundidade.

    Andy Garcia e Catherine O’Hara fazem o humor mais escrachado de Máfia da Dor e a sensação de assistir às cenas dos dois é curiosa: a comédia meio pastelão não combina com a seriedade do tema, mas o desconforto tem um resultado interessante. O diretor, aliás, David Yates (das franquias Harry Potter e Animais Fantásticos) apostou em uma marca visual forte e em um ritmo acelerado e cheio de excessos – entre muitas e muitas aspas aqui, mas existe um clima de O Lobo de Wall Street versão indústria farmacêutica.

    “Pouquíssima coisa precisou ser ficcionalizada porque é surpreendente o que realmente estava acontecendo nesta indústria”, também me disse o produtor do filme, Lawrence Grey. De fato, a realidade é a grande aliada de Máfia da Dor, mas a fórmula certamente se beneficiaria de um pouco mais de profundidade na ficção.

     

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