Coringa (Joker)
Lançado em 2019, "Coringa" foi dirigido e produzido por Todd Phillips (diretor e roteirista da trilogia "Se Beber, Não Case!"), que co-escreveu o roteiro com Scott Silver (roteirista da obra-prima "O Vencedor", de 2010). O filme é baseado no personagem da DC Comics, sendo estrelado por Joaquin Phoenix como o Coringa e fornece uma possível história de origem para o personagem. O longa é situado em 1981 e segue a trama de Arthur Fleck (Phoenix), um palhaço fracassado e aspirante a comediante cuja queda na insanidade e no niilismo inspira uma violenta revolução contracultural contra os ricos em uma Gotham City decadente.
Temos aqui uma verdadeira revolução dentro do universo cinematográfico do Coringa que já conhecemos, pois de fato este filme não tem ligações com as outras versões do personagem vistas anteriormente no cinema. O maior trunfo do longa é sem dúvidas o roteiro, pois Todd Phillips e Scott Silver tiveram uma licença poética, uma liberdade criativa, uma nova maneira de contar as origens do personagem. Por outro lado o roteiro também aborda uma nova forma em nos ambientar sobre uma Gotham City menos dark, menos obscura, menos sombria (como vimos recentemente em "The Batman"), mas totalmente desiquilibrada e decadente.
Outro grande acerto de Phillips e Silver foi todo o estudo de personagens dos anos 70, o que também levou às suas inspirações em obras daquela década como o clássico "Taxi Driver" de Martin Scorsese (que estava inicialmente ligado ao projeto como produtor), que também abordava uma cidade decadente em um filme urbano - além de mais inspirações em obras do Scorsese como "O Rei da Comédia" (1982). Por outro lado o filme adapta vagamente elementos da trama de "Batman: The Killing Joke" (1988), mas Phillips e Silver não buscaram inspiração em quadrinhos específicos.
O longa de Todd Phillips traz um estudo aprofundado no suspense psicológico, no drama, nas variadas vertentes do ser humano, em suas camadas, suas facetas, tudo que lhe é composto e definido diariamente em sua vida. Aqui temos a abordagem da vida de Arthur Fleck desde o isolado, o intimidado e desconsiderado pela sociedade, o fracassado comediante que inicia seu caminho com uma mente perturbada e criminosa, cuja sua ação inicia um movimento popular contra a elite de Gotham City. Toda trama é relatada sob o ponto de vista de uma personalidade que sofre de problemas mentais, desprovido de habilidades sociais e que não faz questão alguma de nos apresentar a verdade dos fatos.
O longa aborda exatamente esta "síndrome pseudobulbar" desenvolvida pelo Arthur - uma doença caracterizada por riso ou choro descontrolado e que surge por diferentes razões. Dois principais fatores que provavelmente contribuíram para sua condição foram a falta de afeto pela ausência do pai e os maus tratos na infância. Pois ao longo da trama descobrimos que muito do que o Arthur desenvolveu foi pelo fato de todo abuso e violência sofrido pelo pai e muitas coisas herdada da própria mãe, que foi diagnosticada com psicose delirante e distúrbio de personalidade narcisista, onde colocou a vida do próprio filho em perigo. O que também está ligado diretamente como o fato dos ataques de riso incontroláveis e sem motivo aparente, que de fato é o sintoma de uma série de condições médicas e, no caso do Arthur, pode ser uma "crise de epilepsia gelástica".
"Coringa" ainda abre espaço para uma crítica ácida e pertinente sobre a sociedade atual em que vivemos, onde só os ricos são notado por um sistema totalitarista e autoritário. Além da crítica de forma enfática a ausência do Estado nas periferias, a negligência e descaso com pessoas com transtornos mentais (como vimos no filme com o corte da verba do tratamento do Arthur), a facilidade do porte de armas, e um empoderamento perigoso que é, sim, capaz de corromper muita gente (como corrompeu o próprio Arthur). O longa traz uma efervescência política, uma anarquia, toda uma abordagem daquela decadente Gotham City que explicitava toda aquela aversão dos pobres com os ricos ao ponto da população apoiar um palhaço (que foi o assassino) para prefeito ao invés de Thomas Wayne (Brett Cullen).
Toda essa abordagem corrobora com um subtexto político em torno da transformação de Arthur Fleck no Coringa. Era como se morresse o Arthur e nascesse o Coringa, pois de fato temos a construção de um psicopata que é feita por sintomas que não coexistem num transtorno real. Ele pode ser pueril, como alguém com retardo, mas é capaz de insights poderosos sobre sua condição individual e social. O Coringa não se encaixa na sociedade, ele é corrompido por ela, ele vive em um nível de loucura que não serve como catarse, onde ele é doentio e não vê problema algum em ser extremamente violento. Além da situação de pobreza, que piora quando ele é demitido, ele também é obrigado a encarar a discriminação diária, o que atinge cada vez mais os seus distúrbios mentais, provocando toda onda de violência e caos. Posso afirmar que a própria sociedade transformou o Arthur Fleck em o Palhaço do Crime muito por falta de oportunidades, empatia, atenção, compaixão, pois ele mesmo afirma que a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse.
O Coringa já foi interpretado por vários atores em diferentes ocasiões ao longo de sua vasta história. Nomes como Cesar Romero, Jack Nicholson, Mark Hamill, Cameron Monaghan e Jared Leto já viveram o clássico personagem da DC. Além do mais icônico até hoje, vivido por ninguém menos que o eterno Heath Ledger. O Coringa de Ledger era mais visceral, mais anárquico, mais apoteótico, mais Palhaço do Crime, já o Coringa de Phoenix é mais obscuro, mais sombrio, mais sofrido, mais injustiçado, uma coisa mais escultural, mais artesanal. E era exatamente esse o maior desafio que Joaquin Phoenix iria enfrentar ao decidir reviver um personagem que foi imortalizado e eternizado pela interpretação estupenda de Heath Ledger.
Porém, devo dizer que Joaquin Phoenix ("Gladiador" e "Sinais") conseguiu marcar o seu nome na história do Coringa com muita dignidade e muita mestria. Pois aqui temos uma interpretação do Coringa diferente de tudo que conhecemos e tudo que já vimos do personagem. Phoenix fez um trabalho grandioso, monumental, conseguindo empregar a sua forma única e autêntica no personagem, com um trabalho primoroso, peculiar, multifacetado, nos elevando para um tom mais cômico onde a comédia era subjetiva, pertence ao domínio de sua consciência - fantástico!
Além de tudo, Joaquin Phoenix se entregou de corpo e alma para viver o personagem, pois o próprio revelou que achar a risada do personagem foi a parte mais difícil de sua performance, e que para aperfeiçoá-la, se baseou em "pessoas que sofrem de risadas patológicas". Outra grande entrega se deu ao fato de Phoenix se submeter a perder cerca 23,5 quilos, indo de 81kg para 56,5kg em quatro meses. Phoenix contou com ajuda médica para emagrecer e fez uma dieta rigorosa - realmente era muito nítido o quanto ele estava magro em cena. Joaquin Phoenix ganhou tudo que foi indicado naquele ano, incluindo merecidamente o Oscar de Melhor Ator.
No elenco ainda tivemos o grande Robert De Niro ("O Irlandês"), que deu vida ao Murray Franklin. Um apresentador de talk show que desempenha o papel principal na queda de Arthur, sendo o verdadeiro estopim, a verdadeira faísca para transcender toda fúria que estava guardada dentro dele. Frances Conroy ("American Horror Story") como Penny Fleck, a mãe de Arthur. Uma figura extremamente importante para todo o processo pelo qual o Arthur foi submetido a passar em sua vida. Zazie Beetz ("Deadpool 2") como Sophie Dumond. Uma mãe solteira e o interesse amoroso de Arthur (que me deixou bastante intrigado com o seu desfecho final).
Tecnicamente e artisticamente "Coringa" é uma obra-prima!
A direção de Todd Phillips é impecável. A trilha sonora de Hildur Guðnadóttir ("Sicario: Dia do Soldado") é sublime e peculiar, principalmente por dar ênfase na maior parte do tempo na decadência de Arthur Fleck. A fotografia é avassaladora, conseguia transcender com muita propriedade cada acontecimento da trama unicamente pelos ângulos fotográficos - mais uma vez eu cito "Taxi Driver", por sua fotografia urbana. A direção de arte é absurda, e muito pelo fato do filme ter sido ambientado no fim da década de 70 e início dos anos 80, que deu um vislumbre para cada detalhe em cena, como os próprios cenários, que trouxe uma riqueza incrível para a obra. Além, é claro, o filme é muito bem montado, muito bem estruturado, muito bem editado, tudo muito bem arquitetado.
"Coringa" ganhou o Leão de Ouro no 76º Festival Internacional de Cinema de Veneza. No Oscar 2020, "Coringa" liderou com 11 indicações - sendo Melhor Filme, Ator, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Cabelo e Maquiagem, Trilha Sonora Original, Edição de Som, Mixagem de Som e Roteiro Adaptado, vencendo em Melhor Ator para Joaquin Phoenix e Melhor Trilha Sonora para Hildur Guðnadóttir. Além de ter sido o segundo filme de HQ indicado na categoria de Melhor Filme, depois de "Pantera Negra" ter recebido indicação no ano anterior. Uma sequência intitulada "Joker: Folie À Deux" ("Coringa 2") será lançada em 4 de outubro de 2024, com Todd Phillips retornando para a direção e estrelado por Joaquin Phoenix e Lady Gaga.
"Coringa" é um filme cru, seco, niilista, intrínseco, tendencioso, individual, peculiar, pertinente, que nos relata como uma sociedade decadente tem o poder de causar distúrbios mentais em uma pessoa e transformá-la em um vilão, ou em uma vítima.
O longa de Todd Phillips entra no hall das melhores adaptações de HQ's de todos os tempos, juntamente com obras como "Homem Aranha 2", "Batman: O Cavaleiro das Trevas" e "Vingadores: Ultimato". Também ficará marcado pela interpretação majestosa de Joaquin Phoenix como Coringa, que pra mim está em pé de igualdade com a versão lendária de Heath Ledger.
"Coringa" é o melhor filme da DC/Warner. A sua verdadeira obra-prima incontestável!
"Só espero que minha morte faça mais sentido do que minha vida"
[01/10/2022]