Minha conta
    Sem Fôlego
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Sem Fôlego

    O mundo sem som

    por Francisco Russo

    Ao longo da carreira, Todd Haynes já demonstrou ser um diretor inquieto - que o digam Velvet Goldmine e Não Estou Lá, dois de seus filmes mais arriscados. Por mais que seu novo trabalho, Sem Fôlego, aparentemente traga uma roupagem tradicional devido ao tom de fábula infantil, na verdade ele traz uma profunda reinvenção do livro no qual foi baseado, de forma não apenas a prestar uma grande homenagem ao cinema mas também esmiuçar uma linguagem cinematográfica com pouquíssimos diálogos. O resultado, em sua metade inicial, é brilhante.

    A história acompanha duas realidades em paralelo: em 1977, o jovem Ben (Oakes Fegley) subitamente é atingido pelo reflexo de um raio, que caiu em sua casa. Em 1927, uma garota (Millicent Simmonds) foge de casa para encontrar sua mãe, uma atriz consagrada. Ambos nada ouvem: ela de nascença, ele devido ao acidente. É a deixa para que Haynes estabeleça uma narrativa onde, cada vez menos, as palavras têm significado.

    Bebendo escancaradamente da fonte do cinema mudo, o diretor aos poucos constrói uma linguagem visual fascinante, sustentada pela fotografia variando entre o colorido e o preto & branco, uma edição ágil que permite que as histórias se desenvolvam no mesmo ritmo e a linda trilha sonora melódica composta por Carter Burwell, com canções pontuais que tão bem representam ambas as épocas - em especial "Space Oddity", de David Bowie, uma espécie de hino do filme. Tal proposta, ousada e sofisticada, eleva o filme de uma forma impressionante - ainda mais porque, no livro, tais mudanças visuais e sonoras simplesmente não existem. Ou seja, trata-se de uma inovação trazida pelo diretor e sua equipe.

    Diante de tamanha excelência narrativa, a história em si fica em segundo plano e é apresentada através de detalhes, sempre mantendo o tom de mistério nas duas jornadas vivenciadas. Há no filme um vigor pulsante na recriação dos anos 20 e 70, embalado pelo habitual capricho de Haynes com o lado estético. Entretanto, desta vez o diretor se afasta do requinte visto em Longe do Paraíso e Carol; aqui, seu objetivo é apresentar algo mais urbano e casual. Um apuro mais estilizado surge apenas na reta final, especialmente em relação à direção de arte.

    Pelas suas características naturais, as crianças são as grandes estrelas de Sem Fôlego, e se saem bem. Michelle Williams tem uma participação muito breve, menor até do que em Manchester à Beira-Mar, enquanto Julianne Moore possui uma função especial na narrativa - mais não deve ser dito, sob o risco de spoiler. Ambas surgem de forma correta mas sem brilho, se adequando ao ambiente proposto pelo longa-metragem.

    De certa forma, Sem Fôlego lembra o trabalho feito por Martin Scorsese com A Invenção de Hugo Cabret, no sentido de se apropriar de uma história protagonizada por crianças para desenvolver uma linguagem própria repleta de referências ao cinema. Por mais que tal proposta não seja tão bem sucedida neste filme, devido ao claro desnível existente quando o longa-metragem precisa, de fato, resolver a história do livro, ainda assim trata-se de um trabalho impressionante que, mais uma vez, ressalta a qualidade de Todd Haynes como realizador - mesmo que este não esteja no mesmo patamar de alguns de seus filmes anteriores, como os já citados Carol, Velvet Goldmine e Longe do Paraíso.

    Filme visto no 70º Festival de Cannes, em maio de 2017.

    Quer ver mais críticas?

    Comentários

    • Edson Laerte Ev
      Me senti perdido em três épocas.. década de 20 , 70 (quando tinha 15 anos)e agora. Um filme brilhante, intenso que mostra dois pararelos que desencadeiam nos dias atuais e diz muito na vida de cada um de nós.
    • Grace T.
      Um bom filme, sem dúvida, que deve ser encarado quase como uma fábula, que na minha modesta opinião pecou na trilha sonora original (achei bem fraca) e na exploração criativa da edição de som, que neste filme tinha muita margem para criar paisagens sonoras mais compatíveis com a surdez das personagens... Teve alguma coisa nesse sentido, mas muito tímidas e convencionais. No mais, bons atores e construção interessante.
    Back to Top