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    Série sobre Elza Soares e Garrincha revela história não contada para entender o Brasil, defende diretora da produção Globoplay (Entrevista)
    Diego Souza Carlos
    Apaixonado por cultura pop, latinidades e karê, Diego ama as surpresas de Jordan Peele, Guillermo del Toro e Anna Muylaert. Entusiasta do MCU, se aventura em estudar e falar sobre cinema, TV e games.

    Com quatro episódios, série documental resgata história do casal através de entrevistas inéditas.

    Chega hoje (4) ao catálogo do Globoplay a série documental Elza & Mané - Amor Em Linhas Tortas. Dirigida por Caroline Zilberman, a produção acompanha os anos em que Elza SoaresGarrincha tiveram um relacionamento. Idealizado pelo Esporte da Globo antes do falecimento da cantora, que ocorreu em janeiro deste ano, o projeto teve contribuição da artista a partir de entrevistas inéditas e encontros feitos no segundo semestre de 2021.

    Em entrevista ao AdoroCinema, a diretora comentou sobre o desenvolvimento desta série, que entre um registro futebolístico e uma saudosa memória musical, se torna um bem-vindo híbrido audiovisual sobre a história de dois grandes ídolos do Brasil e as consequências de um conturbado romance. "É uma série que a gente gostaria que ela assistisse. Ela participou durante todo o processo e a gente ficou sabendo da notícia no meio da produção", conta Caroline, que dirigiu os capítulos e conduziu o roteiro ao lado de Rafael Pirrho.

    O motivo inicial para que essa história viesse à tona foi pelos 60 anos do início do relacionamento entre Elza e Mané, algo que também culmina nas seis décadas da Copa do Mundo de 1962, o grande evento que mudou a vida dos dois. “Eu sou uma grande fã da Elza, e como jornalista e mulher que trabalha com esporte, eu tinha muita curiosidade em descobrir porque ela carregou por tanto tempo esse rótulo de ‘destruidora da carreira do Garrincha’”, explica Carol. “Queria saber de que maneira essa narrativa foi construída.”

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    Segundo a diretora, o livro Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha apresentou outros ângulos sobre o relacionamento entre os astros do documentário. “É importante dizer que a primeira pessoa a falar a verdade sobre o papel da Elza nesse relacionamento foi Ruy Castro, quando ele faz a biografia do jogador no final dos anos 1990”, relembra.

    “Ele durou o que durou porque ela cuidou dele com todo o amor, deu toda a estrutura para ele. Mas o que ficou para as pessoas, principalmente para as gerações mais velhas, foi que a Elza era uma vilã dessa história, que era um grande absurdo. Então, eu queria ouvir dela - uma curiosidade além de jornalística, de mulher mesmo, ouvir ela como a protagonista dessa história e não como aquela tecla auxiliar da história do Garrincha”, reitera.

    “Sentia falta dela como protagonista desse romance. Queria saber o que esse romance causou na carreira dela, porque ela teve muitos prejuízos ao se juntar com o Garrincha. É uma história de amor, mas eles sofreram muitas perseguições - a Elza principalmente.”

    Elza & Mané é a primeira produção audiovisual a ser lançada após o falecimento da “Mulher do Fim do Mundo”. A equipe do projeto esteve com ela até seu último show, em Belém. Após o ocorrido, algumas mudanças foram inseridas na série, algo que poderá ser visto principalmente no quarto e último episódio, conforme indica a cineasta. Um fato curioso é que a morte da cantora aconteceu na mesma data em que Garrincha faleceu, em 20 de janeiro, 39 anos depois.

    “Existe essa coincidência deles terem morrido no mesmo dia e parece que a conexão deles nunca tem fim. Tivemos que adaptar [o projeto] um pouco. Eu fico feliz que, como é a primeira produção [após a morte da artista], a gente vai entregar um material que está a altura do tamanho da Elza. Mesmo sendo uma biografia de casal, de dois protagonistas, acho que o que fica no final é a Elza vencedora, além do reconhecimento que essa geração mais jovem deu à ela. Acho que, como primeiro produto depois de sua morte, é muito justo nesse sentido”, reflete Caroline sobre o lançamento da produção original Globoplay.

    “Deus escreve certo por linhas tortas. A minha foi escrita por pernas tortas”. Elza Soares assim resumiu a sua história poucos meses antes de morrer. Quando a artista faleceu, muito se falou sobre a morte ter acontecido na mesma data em que Garrincha, e questões do relacionamento entre os dois foram resgatadas.

    O relacionamento do casal não foi pontuado apenas pelo amor, mas também teve situações traumáticas envolvendo alcoolismo, violência doméstica, acidentes, entre outras situações delicadas. Questionada sobre o peso do relacionamento na trajetória de Elza, e sobre uma possível romantização desse período, Caroline afirma: “É inevitável a gente reconhecer que o Garrincha foi o amor da vida dela, porque ela tratava o assunto dessa maneira. Ela não aceitava ser colocada como vítima. Essa sim foi uma questão muito séria do relacionamento entre os dois, que a Elza sofreu e a separação veio por causa disso. Mas ela estava com o grande amor de sua vida. E a gente precisa respeitar”, contextualiza a jornalista sobre as muitas críticas que o casal recebeu ao longo dos anos. 

    Quando as pessoas falam em romantização, o que a gente não pode fazer é resumir a Elza a esse relacionamento. Seria uma grande injustiça

    Ela continua: “Ela teve setenta anos de carreira e esse romance durou [pouco mais de] quinze. Ela sempre, até o fim, falou que o Garrincha era importante para ela. Esse 20 de janeiro era uma data que ela sempre tinha em mente. Se você for olhar nas redes sociais, ela sempre fazia posts em homenagem a ele. Então, acho que faz parte da vida da Elza e é uma história que merece ser contada porque é uma história que fala sobre nosso país também.”

    Com participação de biógrafos e jornalistas, o documentário Elza & Mané faz um resgate curioso sobre “uma história que por muito tempo não foi contada”, conforme resume Caroline. Entre os entrevistados estão Chico Buarque, Caetano Veloso, José TrajanoZeca Camargo, Sandra de Sá, entre outras diversas testemunhas oculares que conviveram com a dupla ou estudaram sobre o período. “Existe ainda aquele pudor em falar de pessoas mais velhas, falar sobre a vida pessoal de um colega ou sobre a vida pessoal de uma cantora que ainda está viva. Mas acho que a gente conseguiu permear isso de uma maneira que todos os depoimentos foram muito pessoais. Em relação à Elza, ela topou falar sobre tudo. Foi incrível! Foram entrevistas sobre assuntos muito delicados, sem demonstrar nenhum rancor, algo que também mostra o tamanho dela”.

    A COPA DO MUNDO DE 1962

    Em termos de acontecimentos que dão liga aos demais eventos da série, a Copa do Mundo de 1962 ganha destaque por ser o clímax de uma relação que estava prestes a se firmar. “É o marco inicial do ano em que eles se conheceram”, relembra Caroline. Garrincha, antes de ir para o Chile com a Seleção, declarou para Elza que ganharia o campeonato para ela. Uma distensão no adutor da coxa esquerda tirou Pelé do campo, durante o jogo contra Tchecoslováquia, diminuindo as chances de vitória no Mundial. Ainda assim, Garrincha persistiu em sua promessa para levar o troféu à artista.

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    Naquele período, Elza, que também estava no Chile, teve um marcante encontro com Louis Armstrong. O trecho que compõe o primeiro episódio da série reconstitui o ocorrido através de manchetes de jornal e entrevistas. A cantora encontrou "a personificação do jazz" ao participar de um festival em Valparaíso e, após um inusitado entrave, reconheceu a si mesma no lendário artista.

    “A partir disso, a gente vai até o quarto episódio sempre permeando pela carreira dos dois. Para a Elza, principalmente, de que maneira ela continuava gravando muitas músicas e muitos CDs, só que pelo relacionamento com o Garrincha e toda a perseguição e preconceito, ela estava deixando de fazer os shows. Isso fica muito forte. E pelo lado do futebol do Garrincha, toda a decadência dele a partir da Copa de 1962. É impressionante a busca dele por clubes e como a Elza estava sempre ali como porta-voz dele, tentando o reerguer. Foi mais ou menos por aí que a gente construiu [o roteiro].”

    A diretora ainda detalha como encontrou os registros que acompanham a derrocada do jogador. “Muita gente coloca ele na altura do Pelé, o cara que ganhou uma Copa do Mundo sozinho. Ver as imagens da decadência dele nos arquivos da Globo, imagens que estavam ali guardadas há muito tempo, isso foi uma coisa que me impressionou muito.”

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    A história de origem de ambos é parte crucial dessa narrativa. Garrincha tinha origem indígena. A família dele veio de Alagoas, da tribo Fulni-Ô. Já Elza veio da Vila Vintém, Rio de Janeiro. Os dizeres de sua primeira apresentação, quando fala que veio do “planeta fome” são reproduzidos no documentário.

    Uma coisa que fica clara ao longo da série é de que maneira eles eram corpos políticos. Incomodavam exatamente por pertencerem a comunidades não-brancas e se tornarem protagonistas a partir dos seus talentos.

    Logo no primeiro episódio, é perceptível a forma como a música e os elementos do futebol funcionam como condutores da linguagem estabelecida pela série documental. Além das já esperadas exibições sonoras, também existem outros recursos audiovisuais que complementam a experiência da atração de forma sutil e eficaz. Para além da cativante e complexa história entre o atleta e a cantora, o período em que a história se desenrola apresenta momentos importantes do passado do Brasil. Apesar de serem expoentes de comunidades não-brancas que conquistaram o estrelato a partir de duas paixões do brasileiro, a música e o futebol, ambos sofreram represálias pelo romance.

    “Os dois são o que a gente produz melhor no nosso país. Um é o astro do futebol na sua maior excelência e ela uma das maiores vozes. E ao mesmo tempo, eles sofreram as piores coisas que nosso país pode fazer com seus ídolos. É uma história importante. Em Elza & Mané, a gente não quer romantizar esse casal, a gente quer contar uma história que não foi contada, porque é importante para a gente entender o Brasil também”, ressalta a diretora.

    Um dos importantes pontos dessa narrativa, em relação ao Garrincha, é a desmistificação sobre sua personalidade. Durante a entrevista, a cineasta se disse positivamente surpreendida ao “ouvir das pessoas que conviveram com ele coisas completamente contrárias às lendas que foram ditas sempre nas narrativas da imprensa, de que ele era um cara super infantil”.

    Ela acrescenta: “Durante a produção, a gente encontrou uma ficha do Garrincha feita pelo CENIMAR, um órgão da Marinha, um dos mais repressivos da época da ditadura. Esse documento falava que ele estava sendo altamente influenciado por jornalistas do partido comunista e era tido como inocente útil. É chocante alguém achar que o Garrincha pudesse ser um sujeito perigoso.” Esse documento dizia que o atleta tinha uma mentalidade de uma criança de 14 anos. Ao que Caroline contrapõe: “Isso é totalmente mentira. O Garrincha era um cara super espirituoso!”.

    Sobre o conturbado período, descobriu-se que Elza tinha uma relação próxima com Jango. “Não por um ativismo político, porque o ativismo dela naquela época era muito diferente do ativismo no final de sua vida. A Elza era um corpo político que incomodava muito. Só que acabou cantando em alguns comícios que culminaram no golpe militar, em março de 1964. Isso trouxe consequências muito difíceis para os dois no Rio de Janeiro. Tanto que eles tiveram que se exilar na Itália. Ficaram muito amigos do Chico e da Marieta [Severo] que também ficaram exilados em Roma. Acho muito bacana como a gente conseguiu conversar sobre isso com o Chico Buarque, sobre as questões da ditadura, um lado muito importante para o documentário.”

    Elza & Mané - Amor Em Linhas Tortas

    Além de celebrar os 60 anos do início do relacionamento entre os artistas e também a vitória no Mundial no Chile, a série documental se faz necessária por ressaltar grandes ídolos do Brasil em um momento em que o país não pode esquecer o seu passado.

    Refletindo sobre a atualidade da narrativa, Caroline pondera: “Hoje eles não sofreriam o tanto que sofreram, já que avançamos em várias questões. Mas eu acho que tem algumas questões ali sobre racismo, machismo, a posição da Elza como mulher na defesa dos Direitos das Mulheres, a postura dela, de como ela toma essa experiência crítica da violência doméstica em algo poderoso nas músicas do final da carreira. Acho que é um evento de como a gente precisa cuidar mais dos nossos talentos. São nossos tesouros do Brasil, que às vezes a gente deixa eles caírem no esquecimento, o que é um grande absurdo! É um absurdo uma cantora como a Elza ficar silenciada durante tanto tempo como ela ficou.”

    A força da Elza é o que mais impressiona. São muitos exemplos e muitas tragédias que ela teve de enfrentar, e a maneira como ela levou isso sempre. Fica como um farol para quem esteve com ela e quem vai ouvir seus depoimentos.

    Com quatro episódios, a série Elza & Mané – Amor Em Linhas Tortas já está disponível no catálogo do Globoplay.

    Elza e Mané – Amor Em Linhas Tortas
    Elza e Mané – Amor Em Linhas Tortas
    Data de lançamento 2022-03-04 | min
    Séries : Elza e Mané – Amor Em Linhas Tortas
    Com Elza Soares, Zeca Camargo, Caetano Veloso
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