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    Lovecraft Country: Série da HBO mescla crítica social e ficção científica (Primeiras Impressões)

    Racismo e vida real aterrorizam mais do que criaturas cósmicas em série produzida por Jordan Peele e J.J. Abrams.

    Quem já se deparou com alguma obra de H.P. Lovecraft, sabe que o escritor investia no terror psicológico ao mesmo tempo em que deixava na imaginação a imagem de monstros terríveis como o famoso Cthulhu. Lovecraft Country, nova série da HBO inspirada no livro “Território Lovecraft” de Matt Ruff, bebe bastante dessa premissa. Mas é muito mais do que isso. A produção aposta em representatividade com um elenco excelente e coloca o dedo na ferida em relação à questão racial — fato que talvez desagradasse o próprio Lovecraft, mas é o que justamente enriquece a narrativa.

    O primeiro episódio, exibido no último domingo (17), apresentou a trama simples, porém empolgante. Na década de 50, Atticus Turner (Jonathan Majors), mais conhecido como Tic, é um veterano do exército que volta para casa, em Chicago, por causa do desaparecimento misterioso de seu pai. Saindo em busca do patriarca, ele embarca em uma viagem de carro ao lado do tio George (Courtney B. Vance) e da amiga de infância Letitia (Jurnee Smollett). No caminho, eles enfrentam perigos envolvendo tanto a sobrevivência negra em um país segregacionista, quanto monstros sobrenaturais.

    Série produzida por Jordan Peele aborda crítica social através de alegorias

    Eli Joshua Ade/HBO

    Grande parte do mérito de série são os nomes de peso por trás dela. Lovecraft Country tem produção executiva de Jordan Peele (Corra!, Nós), J.J. Abrams (Star Wars, Lost), e Misha Green (Underground, Helix), que atua como showrunner. Isso quer dizer, sim, que a produção mistura elementos presentes nas obras dos três realizadores, incluindo crítica social, preconceito racial, jornada para sobreviver na América, e criaturas misteriosas a la Cloverfield.

    Para entender a genialidade da produção é preciso compreender um pouco de seu background. O autor de contos de terror e de “ficção pulp”, H.P. Lovecraft, que recentemente foi redescoberto por novos leitores e ganhou status cult, viveu de 1890 a 1937 nos Estados Unidos e, não à toa, era declaradamente racista. A série aposta muito bem em metalinguagem, criando um universo onde os livros de Lovecraft existem, simultaneamente às suas criaturas. Por isso mesmo, o grande trunfo de Lovecraft Country é comparar os monstros cósmicos — uma ameaça desconhecida e irracional — com o preconceito em relação ao “diferente”. O enredo é repleto de alegorias, algumas claras, outras nem tanto, e incitam o espectador a ir mais longe.

    Ironicamente e, diríamos, de forma ousada, o clímax da série não é quando as criaturas de Lovecraft aparecem. Mas antes, na perseguição de carro para fugir de uma lei que permite aos brancos subjugar os negros — lembrando justamente cenas de Corra! e Nós. O racismo e a segregação são mais aterrorizantes do que os monstros que estão além da nossa compreensão. A vida real e os fantasmas que existem até hoje, velados sob os falsos “bons modos” da sociedade são mais verdadeiros e verossímeis.

    Ambientação de Lovecraft Country brinca com o verossímil

    Elizabeth Morris/HBO

    A série da HBO consegue muito bem mesclar momentos contemplativos com sequências de tensão. No entanto, algumas cenas podem beirar o clichê, especialmente quando os efeitos visuais dos monstros se comparam à cenas de Stranger Things ou mesmo John Carter: Entre Dois Mundos, cujo livro foi citado por Tic.

    Por outro lado, Lovecraft Country é bem sucedida em construir uma ambientação dos Estados Unidos nos anos 1950. Especialmente a segregação que se esconde por trás do “American Way of Life” feito para brancos, às custas dos negros, como denotam as placas ofuscadas por vitrines extravagantes, o discurso original feito por James Baldwin no debate com William F. Buckley, ou a lição sobre porque a Casa Branca tem essa cor.

    Enquanto isso, a produção ainda apresenta uma série de referências não só à obra de Lovecraft mas também à elementos da ficção científica e cultura pop no sonho colorido de Atticus — ainda que pouco disso existisse ou fosse disseminado na época em que a série é situada. A cena inicial é um ode da direção de arte aos fãs de scifi.

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    Protagonistas femininas roubam o show

    Elizabeth Morris/HBO

    Ainda que o roteiro seja o que faz Lovecraft Country brilhar, ele é coroado por belas atuações e se destaca por ser uma ficção científica com um elenco majoritamente negro. Jonathan Majors (Destacamento Blood) entrega um Atticus sensível, desconfiado e heróico, desgostoso por decepcionar seu pai e por escolher lutar por um país que não lhe proveu nada. Já Jurnee Smollett (Aves de Rapina) entrega uma Letitia cativante, ao mesmo tempo em que o veterano Courtney B. Vance está excelente no papel de George. 

    A produção ainda promete apostar em mais personagens femininas, como a irmã de Letitia, Ruby, interpretada pelo Wunmi Mosaku (Luther); a esposa de George, Hipólita, vivida por Aunjanue Ellis; a pequena prima de Atticus, Diana (que no livro era um personagem masculino), interpretada por Jada Harris; além de Abbey Lee (Mad Max: Estrada da Fúria) como a misteriosa Christina Braithwhite (que na obra original também era um homem).

    Lovecraft Country dá espaço para o suspense e mistério, mas ainda precisa chegar ao tom de terror que prometeu. Uma coisa é certa: a série entretém e sabe onde quer chegar. Em uma época de movimentos sociais como Black Lives Matter, é uma obra relevante.

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