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    Better Call Saul: Confira nossa crítica da segunda temporada

    Tão grande quanto Breaking Bad.

    Um homem de família típico, casado, pai de um jovem deficiente e de uma menina prestes a nascer, Walter White (Bryan Cranston) é um químico brilhante de carreira frustrante. Professor escolar, ele tem apenas uma saída para pagar o seu tratamento de câncer: produzir e traficar metanfetamina. Este é o argumento de Breaking Bad, um dos mais poderosos já criados para a televisão. Porém, a série foi além de uma improvável história de gângster — apesar de tanto subtema importante — para se tornar um fenômeno mundial. Dentre tantas qualidades, sua base é uma dramaturgia refinada, que permitiu-lhe alcançar o status de um verdadeiro estudo de personagem.

    Better Call Saul trilha um caminho semelhante.

    Na estrutura da série derivada, os criadores Vince Gilligan e Peter Gould subvertem por completo as características responsáveis pela popularidade de Saul Goodman (Bob Odenkirk). Em vez de uma comédia sobre um advogado trambiqueiro, eles realizam o drama de um homem que é caricatura de si mesmo. A história trágica de alguém que, de tanto vestir um personagem para vencer, tudo perde — para sobreviver, inclusive a identidade. O comovente início de cada temporada se destina a isso, mostrando a vida em preto e branco do terceiro Jimmy, Gene, dono de um Cinnabon no Missouri.

    Better Call Saul tem, por isso, uma progressão lenta. Minuciosa, psicológica. E emocionante. Como fora Breaking Bad, com as temporadas (dois anos em seis) expandindo conflitos e revelando personagens tão complexos. Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) cresce tanto na segunda temporada que seu arco se torna próprio, independente de Jimmy. Cada vez mais, assistimos à saga solitária de um homem que revive fantasmas do passado para se ver livre deles, em definitivo, no futuro. Seu desenvolvimento aqui torna ainda mais triste o seu desfecho em Breaking Bad.

    Mike também se transforma no elo principal de Better Call Saul com a série original. Especialmente no que diz respeito à subtrama criminosa de BrBa (o que inclui participações muito especiais). O deserto segue sendo o local onde "disputas entre homens" se resolvem, remontando à tradição sangrenta dos faroestes. O ápice disso é o season finale, que ainda reserva uma sequência incrível: da mira de sua arma de longa distância, focalizando um alvo, Mike ouve o som de uma selva que não se encontra em Albuquerque, mas em suas lembranças da Guerra do Vietnã. É a edição de som entrando na mente do personagem para servir à narrativa. Coisa linda!

    Tamanho apuro cinematográfico recai sobre Vince Gilligan. Fã de Quentin Tarantino, o cineasta se cerca dos melhores profissionais (principalmente montadores e o diretor de fotografia Arthur Albert) para exprimir todo o poder da imagem. Sua força se impõe no modo como ilustra, por exemplo, o estado psicológico de Kim Wexler (Rhea Seehorn). Numa cena, uma breve saidinha para fumar, no terraço de um prédio, após uma vitória individual, nos transporta para a primeira temporada, quando esses momentos eram compartilhados com Jimmy, num subsolo, vista apenas parcialmente e com o rosto mergulhado em sombras. Essa é uma nova Kim, conquistando sua independência plena: pessoal, profissional e narrativamente. E Vince Gilligan não emprega uma palavra para dizer isso. Ele mostra!

    A partir daí, tudo faz sentido. No primeiro ano de Better Call Saul, Kim era apenas coadjuvante, apoiadora. Inicia a segunda temporada como mera substituta de Marco (Mel Rodriguez), aplicando um golpe com Jimmy. Esse mau presságio se concretiza mais à frente, quando a proximidade de Jimmy a leva para o fundo do poço profissional: o mesmo setor de cartas onde ele trabalhou antes de se formar. Vira uma funcionária descartada, descartável. A volta por cima, comemorada com uma tragada no estacionamento a céu aberto, marca o início de uma Kim que atira verdades sobre o ex-chefe, Chuck (Michael McKean). Mas não por confiar em Jimmy; por amá-lo. E por enxergar os defeitos e virtudes dos irmãos como antes só nós, espectadores, víamos. Diante de tamanha evolução, Rhea Seehorn brilha, dando uma aula de interpretação e sutileza na cena que antecede o ponto alto da série até aqui: o final do episódio nove, "Nailed", quando entra na mente de Jimmy e o aconselha a limpar o rastro de sua trapaça.

    A dualidade entre Jimmy e Chuck é a pedra fundamental de Better Call Saul. Durante a série, conhecemos causas e consequências que interferem nas ações dos irmãos: fatos que estimulam um pequeno Jimmy a trapacear, como o seu comportamento interfere no modo como Chuck o enxerga, o despreza, como isso o motiva a errar de novo e por aí vai. Um círculo vicioso que se torna um aspecto da formação de ambos. Assim, ao mesmo tempo que humanizam os irmãos com dramas tão reais e compreensíveis, Gilligan e Gould mostram como são falhos. Eles são os únicos culpados por alimentar, entre si, uma verdadeira guerra de mágoas e egos. Se as atitudes de Jimmy prejudicam a todos que ama, Chuck se transforma num sujeito tão implacável para derrubar o sangue do seu sangue que sua aura de correção cai por terra e ele mente. Engana. E a trama explode!

    O quinto episódio apresenta Rebecca (Ann Cusack) — ex-mulher de Chuck! Mesmo com todas as advertências do marido, Rebecca ignora o comportamento vulgar de Jimmy e gosta dele. Chuck se incomoda. Eureca! Chuck tem inveja de Jimmy! Apesar de nada confiável, um sujeito maleável, filho amoroso, de quem todos gostam. Apesar de correto, Chuck é severo, frio, cuja falta de afeto machuca. A Jimmy, sim, mas principalmente a si mesmo. Nesse sentido, a hipersensibilidade eletromagnética de Chuck ganha outra proporção. Sua condição é uma doença psicossomática, noceba, que divide a comunidade científica. Devido ao seu pouco conhecimento, afasta seus pacientes de outras pessoas. Termina casamentos. Frustra Chuck — que se isola mais. Ele pode até repreender a conduta de Jimmy, mas o que ele não suporta de verdade é a aceitação de alguém tão imperfeito.

    Como Yin e Yang, Chuck e Jimmy se completam em alguns momentos. Numa cena em particular, no último episódio, esse forte laço se concretiza no presente e no futuro, com os irmãos se abraçando em tempo real e num portarretrato antigo. Mas Yin e Yang também significam escuridão e luz, elementos que não coexistem. A relação dos irmãos está prestes a ruir, e parece cada vez mais próxima de um desfecho tão traumático quanto o de Breaking Bad — no caso de Jimmy, Saul, Gene, o mesmo final.

    Assim, Better Call Saul não para de crescer. Graças à complexidade com que estuda seus personagens, expande sua dramaturgia e enriquece tudo visualmente, a série se eleva a um patamar equivalente ao da insuperável Breaking Bad. E nos impede de qualquer anseio por reencontrar Saul Goodman — bem menos interessante do que Jimmy McGill. Ao fim dessa segunda temporada excelente, ficam o desejo de passar mais tempo ao lado do solitário Mike, a expectativa pelo que virá da rixa entre Jimmy e Chuck e que ao menos duas figuras desfrutem de um final feliz: a personagem Kim Wexler e o brilhante contador de histórias Vince Gilligan.

    Nota: 4,5/5

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