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    Climax: Gaspar Noé explica porque o seu "filme-catástrofe" vai contra o cinema comercial (Exclusivo)

    Dança, bebidas, sexo. Em Climax, o diretor de Irreversível viaja do paraíso ao inferno.

    "Você detestou Irreversível. Você desprezou Viagem Alucinante. Você rejeitou Love. Agora experimente Climax". O diretor Gaspar Noé sempre foi um grande provocador, com suas imagens fortes de sexo e violência, de modo que os distribuidores passaram a usar esta imagem a seu favor no lançamento de Climax, o grande vencedor da Quinzena dos Realizadores do último Festival de Cannes.

    Desta vez, o "diretor que todo mundo ama detestar" traz a história de um grupo de bailarinos comemorando o fim dos ensaios com uma festa regada a bebidas. No entanto, começam a passar mal e suspeitar que a sangria foi batizada com alguma droga pesada. Aos poucos, o ambiente de diversão se transforma num pesadelo sangrento e possivelmente mortal.

    Noé esteve em São Paulo para apresentar o filme à imprensa e conversar com os jornalistas. Ele disse ter selecionado o seu elenco de dançarinos em bares e casas noturnas francesas, deixando grande espaço para o improviso dos diálogos. No entanto, as empolgantes cenas de dança foram coreografadas para as câmeras. 

    O cineasta franco-argentino ainda brincou que a nova produção seria uma coletânea de "piores momentos" de sua filmografia, incluindo os seus temas e maneirismos preferidos. O AdoroCinema conversou em exclusividade com ele:

    O letreiro inicial diz que Climax é um filme "francês, com orgulho". O que isso significa para você?

    Gaspar Noé: É um filme feito na França, com dinheiro francês, dançarinos franceses e técnicos franceses. Ele tem orgulho de existir, porque sei que ele jamais seria produzido em outro lugar além da França. Hoje, o cinema comercial é pensado para crianças e adolescentes, cheio de aventuras e ficções científicas cada vez mais toscas. É preciso fazer uma campanha contra o ópio do povo. 

    Durante a minha infância e adolescência, os filmes que me empolgavam de verdade eram Taxi Driver e Amargo Pesadelo, os filmes de Pasolini e Fellini. Hoje, o cinema de autor é feito com baixo orçamento, e necessita de recursos europeus ou parcerias com a televisão para existir. Além disso, sempre te pedem um roteiro esmiuçado, para ver claramente qual será o resultado, compreender seu ponto de vista moral e social. Mesmo o cinema de autor se torna cada vez mais consensual.

    Felizmente, na França ainda existe um pouco de liberdade de expressão, que permite fazer filmes mais fortes. Climax não tem nada de novo nesse sentido: ele é a continuação do cinema de 1970 e 1980. São formas de cinema em via de extinção. Não consigo imaginar alemães fazendo um filme desse, e os Estados Unidos jamais produziriam algo do tipo. Por isso digo que é uma produção francesa e orgulhosa de sê-lo.  

    O aspecto mais provocador dos seus filmes é o fato de nunca ter qualquer julgamento moral.

    Gaspar Noé: Claro, eu não sou um padre! Não posso dizer o que é bom e o que é mau, além disso, é preciso se questionar se essa divisão tem sentido, porque são questões relativas. Frequentemente, trata-se de um pretexto para dominar as pessoas com mais facilidade através da culpa.

    No Japão, por exemplo, não existe a noção de bem e de mal. Passei muito tempo lá, e percebi que eles trabalham apenas com a ideia de hierarquias. No reino animal, também não existe noção de bem e de mal, apenas o instinto de sobrevivência e de proteção comunitária. Ou seja, isso é construído, não é algo natural. 

    Os dançarinos do filme buscam a liberdade através da dança, e depois possivelmente por meio da droga.

    Gaspar Noé: A droga não é o tema do filme, de modo algum. Climax é um filme sobre a desordem, sobre a fragilidade da psicologia humana. Algumas pessoas entram em delírios profundos sem ter tomado nada, apenas por uma crise existencial. Algumass são apenas frágeis, e ficam loucas quando bebem um pouco, enquanto outras bebem muito mais e permanecem conscientes. É uma questão de controle. A droga, aqui, é um placebo.

    Para mim, Climax é um filme-catástrofe, e o detonador poderia ser qualquer outro elemento. É algo como Inferno na Torre, nesse sentido, ou Titanic. É acima de tudo a descrição de um grupo social equilibrado que se autodestrói por dentro. Existe certa afinidade com filmes de terror como Calafrios, de David Cronenberg, ou O Despertar dos Mortos, de George Romero, que abordam a decomposição de um grupo social privilegiado. A droga é um mero pretexto.

    É curioso que, apesar do caos, os personagens não conseguem sair da pista de dança. Eles voltam ao local dos atos de violência, como se estivessem presos.

    Gaspar Noé: É verdade. E lá fora tem um frio congelante, a gente sabe que quem sair vestido desse jeito vai morrer de frio. Eu vi um filme, recentemente, o norueguês Utoya - 22 de Julho, sobre os atentados. É muito parecido com a segunda metade de Climax, tanto no conceito quanto na realização, porque são jovens presos numa ilha, sem conseguir sair. São filmes de catástrofe coletiva.

    Talvez, indiretamente, o filme tenha sido influenciado pelos atentados no Bataclan, em Paris. As pessoas dançavam, escutavam música, e 130 delas acabaram mortas. A minha sobrinha tinha comprado ingresso para este dia, mas desistiu de ir. Isso está na nossa mentalidade contemporânea: o perigo de se fechar num lugar com anônimos e descobrir alguém que pode querer atirar nos outros, semear o caos.

    No filme, é possível que uma pessoa com más intenções tenha colocado a droga na sangria, mas a resposta só vem de fato no final. Mesmo assim, poderia ser um medo coletivo que degenera, e que poderia acontecer em qualquer grupo. Imagine uma equipe de futebol, por exemplo, que está ganhando todas as partidas com facilidade e tem certeza de vencer o campeonato. Certo dia, eles jogam mal e perdem. No vestiário, um começa a acusar o outro, que joga a culpa num terceiro, e está instalado o caos. Uma energia que começou positiva se transforma em destruição.

    A câmera está sempre sobrevoando os dançarinos, como se flutuasse.

    Gaspar Noé: Como uma mosca! Ela vai flutuando até o local onde existe mais tensão, mais conflitos. Era preciso coordenar as situações, para que estivessem sempre perto uma das outras, permitindo à câmera mudar de foco com facilidade.

    Tem um filme americano antigo, Slacker, sobre pessoas que se cruzavam na rua, e a câmera mudava: primeiro o olhar acompanhava um personagem, e depois que ele passava por outra pessoa, a câmera seguia esta outra, e assim por diante. No final, tínhamos o retrato de dez pessoas, sem personagem principal.

    Eu adorei este conceito da câmera que passa de um personagem ao outro, você nunca sabe se ela vai voltar ao personagem de antes ou deixar a história suspensa. Mesmo quando eu seguia alguém por muito tempo, já começava a ficar preocupado e pensava: "Logo logo ele vai virar protagonista, já está na hora de abandoná-lo e passar a seguir alguém diferente!". 

    Depois de Irreversível, Viagem Alucinante e Love, já se espera das suas produções uma carga forte de sexo e violência. A publicidade de Climax em Cannes inclusive brincou com este aspecto provocador. O que pensa da imagem de cineasta polêmico?

    Gaspar Noé: Eu tento apenas me divertir, como fizeram muitos diretores dos anos 1960 e 1970, e mesmo antes disso. Buñuel se divertiu muito à sua maneira, assim como Fassbinder, CronenbergScorsese com Taxi Driver. Os filmes que amo não estão necessariamente à frente do tempo deles, mas sabem brincar com a época em que se inserem.

    Eu não me considero mais provocador do que uma centena de diretores que vieram antes de mim. O problema é que o cinema se tornou mais asséptico desde os anos 1990. O cinema comercial ficou mais televisivo, e o cinema americano está mais insípido do que nunca. Como esta é a forma dominante, eu prefiro evitar a maioria dos filmes americanos e me guardar para os próximos de Michael Haneke, Lars Von Trier, Abdellatif KechicheTodd Solondz e Darren Aronofsky.

    Existem diversos diretores maduros agora, mas eles são raros em comparação ao número de cineastas fortes dos anos 1970. São aqueles filmes que determinaram a cinefilia de hoje, porque eram mais criativos. Hoje, somos mais capitalistas e filmamos com medo de não agradar o público. Quando você pega a lista das estreias em 1975, tinham pelo menos três grandes filmes por mês, hoje, são seis ou sete obras-primas por ano, e olhe lá.

    Hoje em dia, os projetos que mais conseguem abordar temas provocadores, com diretores realmente incisivos, são os documentários. Isso vale tanto para aqueles que passam nas salas de cinema quanto para os lançados diretamente na Netflix. A forma de comunicação audiovisual adulta e madura se encontra principalmente entre os documentários.

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