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    Tirando o Mofo: Verdades e Mentiras, o melhor documentário de todos os tempos

    "Este não é o século da farsa. Nós, os homens desonestos, sempre estivemos com vocês".

    Daqui é praticamente possível ouvir o resmungo de frustração que você, leitor, provavelmente fez ao ser atraído pelo chamativo título desta edição da Tirando o Mofo. Você pode estar descontente por não conhecer o filme que acaba de ganhar o título de “melhor” em alguma coisa, ou simplesmente por não concordar com este autor. Afinal de contas, “quem diabos é esse colunista pretensioso que acha que pode eleger o que está no topo ou não”?

    Bem, antes da defesa e das explicações, vamos aos fatos: Verdades e Mentiras, lançado em 1975, é um dos últimos trabalhos de Orson Welles, um dos mais importantes nomes da sétima arte, que introduz seu filme do seguinte modo: “Senhoras e senhores, para fins de introdução, esse é um filme sobre artimanha e fraude, sobre a arte das mentiras. Contada à lareira, no mercado ou em um filme, quase toda história é certamente algum tipo de mentira. Mas não dessa vez. Não, isto é uma promessa. Na próxima hora, tudo que você escutar aqui será a verdade baseada em fatos sólidos".

    Não há como discutir com as palavras de Welles — ele é um gênio! Só que o problema é que ele promete todos esses fatos logo após autodenominar-se, ainda no início de F for Fake (título original), como um charlatão — e não poderia haver contradição mais importante do que essa.

    Quando tinha apenas 23 anos, pouco tempo após chocar e subverter as tradições teatrais ao encenar o “Macbeth” de William Shakespeare com um elenco formado inteiramente por atores negros, Welles foi convidado a levar sua trupe para as rádios. Foi com um microfone que o diretor começou a construir uma verdadeira mitologia ao seu redor, mais precisamente através da transmissão da adaptação radiofônica de “A Guerra dos Mundos” (ed. Suma), clássico de ficção científica do autor H.G. Wells. Só que havia uma “pequena” pegadinha.

    30 de outubro de 1938, véspera do Dia das Bruxas... ou a data em que os alienígenas invadiram a Terra. Narrada pela voz grave e única de Welles, a chegada dos extraterrestres ao nosso planeta foi entregue aos ouvintes como uma verdadeira notícia, parte de um segmento de um noticiário urgente, porém fictício. Em uma época onde tudo que vinha do rádio só poderia ser a mais pura verdade, pode-se imaginar o tamanho do pânico generalizado instaurado nos quatro cantos dos Estados Unidos.

    Os relatos sobre a quantidade de pessoas afetadas pela trapaça de Welles variam em quantidade - alguns ouvintes teriam se refugiado por meses, de acordo com a lenda -, mas o que parece ser indiscutível é o fato de que o ousado jovem foi trucidado pela imprensa. Jornais de grande circulação criticaram o programa e Welles foi condenado publicamente por inúmeros formadores de opinião. O “estrago”, no entanto, já estava feito: dois anos depois, o cineasta migraria para Hollywood, onde mudaria para sempre a história da sétima arte.

    Cidadão Kane, contudo, ficará para outra hora. Desviamos rapidamente apenas para ilustrar como Welles era o candidato mais indicado para contar a história real de um escândalo que abalou o mundo das artes na década de 1970: as inacreditáveis mentiras de dois infames falsários, o pintor Elmyr de Hory e o escritor Clifford Irving.

    Este assinou um livro sobre como o primeiro conseguiu enganar inúmeros negociantes de arte e alguns dos curadores dos mais prestigiados museus do mundo, com cópias extremamente precisas. Entrevistado por François Reichenbach, produtor de Verdades e Mentiras, Irving chega a relatar casos em que levou quadros falsos do pintor italiano Amedeo Modigliani, feitos por de Hory, e obteve cotações astronômicas sobre as obras, enganando especialistas estabelecidos no universo das pinturas.

    Para contar uma mentira vestindo-a como uma verdade é preciso que a mesma contenha uma certa dose de fatos, como aponta o autor Álex Grijelmo em seu artigo para o jornal El País. Quanto mais próxima da realidade, a mentira tem mais chances de acertar o seu alvo: esta é a receita, por exemplo, das fake news.

    Uma das mentiras mais alarmantes contadas por Donald Trump durante sua campanha presidencial envolveu o local de nascimento de Barack Obama: de acordo com o político republicano, o ex-Presidente dos Estados Unidos não era americano, mas sim um muçulmano estrangeiro. Para milhões de eleitores não importou o fato de que Obama tenha nascido, de fato, no Havaí; por ter um sobrenome como Hussein, o democrata tornou-se, para muitos, mais um odiado muçulmano.

    Ou seja, para contar mentiras é preciso estabelecer algum tipo de confiança, ter algum tipo de contato com a realidade e transmitir segurança suficiente de que aquela é a verdade, em toda sua glória — e é precisamente isso que Welles tenta mostrar em Verdades e Mentiras e em toda sua carreira.

    Adepto das maquiagens e próteses pesadas para se transformar em pessoas completamente diferentes em seus trabalhos como ator, Welles é o mais talentoso dos ilusionistas porque conquista o espectador com sua voz sedosa e suas “verdades” charmosas. E 40 anos antes do dicionário Oxford escolher a expressão “fake news” como a palavra do ano de 2017, Welles já dizia: “Isso não é novidade. Nós, os homens desonestos, sempre estivemos com vocês”.

    Verdades e Mentiras é, portanto, muito mais do que um documentário complicado sobre um escândalo inverossímil: é também a autobiografia de um charlatão, de um homem que dedicou sua vida a demonstrar como a verdade e a mentira, na maioria das vezes, se parecem muito. Se estivesse vivo em 2018, o já centenário Welles com certeza se divertiria por ter antecipado a nossa era da confusão, do engano, da mentira e da pós-verdade.

    Conforme nos aproximamos do final, é possível que as duas perguntas iniciais já tenham sido respondidas. Para os que não conheciam F for Fake, fica a sugestão de encarar os desafios propostos por Welles, de tentar descobrir o que é verdade e quando ele mente descaradamente ao seu público — e 60 minutos não duram para sempre. Através das manipulações realizadas no cinema na sala de edição dos filmes, ambiente no qual Welles narra a maior parte de Verdades e Mentiras, o cineasta nos ensina que tudo depende de como a história é contada; que tudo depende dos pontos de vista que são mostrados e das cenas que nunca são vistas.

    Para aqueles que não concordam com a ideia de que este é o melhor documentário de todos os tempos, talvez vocês estejam certos. Mas se Verdades e Mentiras não é o melhor documentário de todos os tempos, certamente é o melhor documentário para os nossos tempos por mostrar que, em épocas de total descrença e de total desilusão, tudo pode ser verdade — inclusive a própria verdade em si.

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