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    Tirando o Mofo: Halloween, um baile de máscaras, medo e anarquia

    Quatro décadas do reinado de terror de Michael Myers.

    Esta é a segunda edição da coluna Tirando o Mofo. Para conferir a primeira, sobre as quatro versões de Nasce uma Estrela, clique aqui.

    Um ser de rosto pálido, sem emoção, de olhos muito escuros. Com o demônio dentro de si, sem a menor compreensão humana, sem saber diferenciar o bem do mal, o certo do errado. A definição em palavras chega tarde, quase no fim do filme, mas John Carpenter nos faz entendê-la, visualmente, desde o início de Halloween - A Noite do Terror. Em resumo, o diretor deixa claro que estamos diante de um dos maiores e mais icônicos vilões da história do cinema: o psicótico Michael Myers (Nick Castle).

    Mas o psicopata mascarado não é apenas o assassino de três jovens na noite do Dias das Bruxas de 1978 e grande inimigo de Laurie Strode (Jamie Lee Curtis). No retorno do carrasco às telonas — por ocasião de seu aniversário de 40 anos e naquele que pode ser o capítulo final da franquia —, eis a pergunta do milhão: como The Shape (ou A Forma, como o mascarado Myers é conhecido), personagem de um terror independente de orçamento mais do que modesto (US$ 300 mil), alcançou o posto que hoje ocupa como uma das figuras mais assustadoras da recente cultura popular?

    Mas para responder à questão com calma, é preciso retroceder um pouco. Aliás, vamos até esquecer de Halloween - A Noite do Terror por enquanto para focar apenas no feriado que dá nome ao filme.

    Economista da Universidade de Utah, o pesquisador Russell W. Belk aponta o Dia das Bruxas como a perfeita antítese dos outros dias festivos dos Estados Unidos: a ressurreição da Páscoa é substituída por fantasmas e esqueletos; a celebração da família, promovida pelo Dia de Ação de Graças, é trocada por uma zombaria; e a benevolência do Papai Noel é derrotada pela malevolência das bruxas. Em resumo, o Halloween, na visão de Belk, seria o "anti-festival, especificamente anti-lar, anti-família e anti-religião".

    Assim, por mais que seja costumeiramente associado às brincadeiras infantis por causa da ideia de "doces ou travessuras", o Dia das Bruxas possui, de fato, um quê de anarquia em si, evidenciado pelo uso de máscaras. Não muito diferente do nosso Carnaval, o Halloween funciona portanto como uma espécie de suspensão temporal da linearidade da vida, uma fuga das repressões sociais, culturais e sexuais. Durante a noite do dia 31 de outubro e com uma simples troca de rostos, é possível descartar sua identidade para tornar-se qualquer um ou qualquer coisa — inclusive um monstro.

    A violação de tabus e regras viabilizada pelas máscaras e fantasias do Halloween desembocou em inúmeras travessuras verdadeiramente terríveis, como séries de incêndios criminosos. Durante os anos 1970, marcados por conflitos geracionais, étnicos e culturais nos Estados Unidos, essas sequências de delitos piromaníacos evoluíram para o que ficou conhecido como a "Noite do Demônio"; o auge crítico desta celebração às avessas se deu em 1984, quando mais de 800 edifícios foram queimados em Detroit.

    Aliados ao sadismo de determinadas "pegadinhas" de Halloween dos anos 1960 — à época, doces foram envenenados e maçãs recheadas com lâminas —, estes preocupantes desenvolvimentos do sombrio feriado podem ser encarados como as bases para o surgimento de um personagem como Myers. Da mesma forma como nos pesadelos e no próprio Dia das Bruxas em si, A Forma incorpora as tênues distinções entre fantasia e realidade, caos e ordem.

    Com o embargo das instituições sociais, o vilão de Halloween - A Noite do Terror é a personificação de um estado de puro terror. Como uma espécie de vírus do próprio sistema, o psicopata age como um algoz regulador, que pune os jovens por corromperem suas inocências através do sexo. Ainda mais inquietante é o fato de que A Forma não é uma entidade sobrenatural: trata-se de um humano frio, objetivo, que nem sequer corre para perseguir suas vítimas. Ele caminha, resoluto e paciente, na cola de seus alvos, condenando-os de imediato.

    Mas a obra-prima de Carpenter não deve ser vista apenas como um conto moral — o próprio realizador, aliás, não acredita que Strode (que seria uma vítima casual de Myers) tenha sobrevivido por ser virgem, mas sim por causa de sua energia sexual reprimida, descarregada através de um objeto fálico (a faca). O que faz com que A Forma seja, portanto, um antagonista tão representativo não é só sua atuação como instância punitiva ou sua humanidade, demasiado humana, escondida sob um rosto assustador — originalmente uma máscara de US$ 2 do Capitão Kirk de William Shatner na série Jornada nas Estrelas.

    Ao mesmo tempo em que o protege por trás da figura de um monstro anônimo, a máscara de Myers também materializa e centraliza todas as ansiedades da tradicional classe média norte-americana, aquela que vive em subúrbios (aparentemente) pacatos e perfeitos como o de Haddonfield, Illinois. E essa é a jogada de mestre de Carpenter — que, não à toa e tão bem, joga com o que está fora do campo de visão de seus espectadores, com o que está escondido na escuridão em Halloween - A Noite do Terror.

    Como em uma inversão da fórmula do mestre Alfred Hitchcock, o cineasta de Halloween - A Noite do Terror não nos mostra a bomba que está prestes a explodir, mas nos deixa a par de sua existência. Ao deixar o preenchimento das lacunas para nossas mentes assustadas — encontrando o perigo a cada esquina, a cada longo plano, a cada toque do sintetizador — Carpenter libera A Forma do corpo de Myers. Mais ideia do que homem, o vilão de Halloween é tão ameaçador quanto é porque opera no nível abstrato e fantamasgórico dos medos e ansiedades. Porque é tudo o que os medos e ansiedades são.

    Por ser um reflexo dos temores de um tempo, de um fragmento da história dos Estados Unidos, A Forma não pode atacar com força total a qualquer momento. É por isso que as inúmeras sequências e remakes lançados após o Halloween original não funcionaram. Não é coincidência do destino que aquela que promete ser a batalha final entre Strode — que vai de potencial vítima à potencial vingadora — e Myers tenha sido produzida em 2018. Halloween não funcionaria 1988, 1998 ou 2008 porque o timing precisa desta narrativa precisa ser correto, precisa chegar no momento certo.

    40 anos após sua estreia, o "bicho-papão" retorna em um espaço-temporal em que as inquietações estadunidenses são muito semelhantes às dos anos 1970. Polarizações políticas; escândalos; alterações no tecido social; o medo do Outro — ou seja, o temor provocado por aquele que é diferente, estrangeiro e/ou "alienígena" por fugir da norma hegemônica —; a depressão pós-guerra: tudo isso pode ser encontrado no psicológico quebrado daquela época e também dos dias de hoje, e tudo isso praticamente chamou por Myers de volta.

    Myers, o "bicho-papão", faz uma vítima.

    "Perseguido por aqueles em minha cola, prazerosamente encontrei refúgio na solitária terra dos tolos onde a máscara, com sua violência, seu brilho e sua luz, reina suprema", disse o pintor James Ensor, às voltas com os críticos, cujo autorretrato aparece em uma das paredes do quarto de Laurie à certa altura. Artista expressionista conhecido por criar figuras bizarras e grotescas, o belga é o perfeito companheiro de Carpenter: ambos vão direto ao ponto e ao coração de suas sociedades — e, de lá, geram monstros mascarados que são as reais faces do medo.

    Museu Real de Belas Artes da Antuérpia
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