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    Opinião: 2017, o ano de filmes brasileiros "que nem parecem brasileiros"

    Por que tantas produções nacionais usam o cinema americano como padrão de qualidade?

    Entre as entrevistas que o AdoroCinema tem feito com diretores, atores e produtores, uma comparação aparece com frequência na hora de falar sobre o cinema brasileiro: a produção de nível "comparável ao americano".

    Rafael Ribas, diretor da animação Lino, afirmou o orgulho de realizar, com orçamento limitado, uma produção técnica comparável aos filmes americanos do gênero, algo confirmado por Dira Paes, dubladora do projeto. Dan Klabin, produtor de Bingo - O Rei das Manhãs, ficou satisfeito ao ver o filme comparado às "grandes biografias hollywoodianas de redenção".

    Malasartes e o Duelo com a Morte, projeto brasileiro com a maior quantidade de efeitos especiais em todos os tempos, fez campanha frisando a importância de trazer personagens voando e fazendo magia, como no cinema americano. O diretor Diego Freitas, do ainda inédito O Segredo de Davi, defende-se por antecipação das prováveis comparações com o cinema hollywoodiano, dizendo que este será, inevitavelmente, o referencial de qualidade para os brasileiros. J.C. Feyer reconhece igualmente as qualidades "americanas" de seu filme de terror O Rastro, embora ressalte os traços tipicamente nacionais da história.

    O horizonte é americano?

    Uma primeira maneira de compreender essa onda de reações seria o tal "complexo de vira-lata" que o autor Nelson Rodrigues usava para descrever o povo brasileiro. Rodrigues falava sobre a constante impressão de que o produto estrangeiro é sempre melhor que o nosso, subestimando a qualidade e o esforço dos filmes (e livros, e peças e muitos outros) produzidos no Brasil. Sabe aquela história de que a grama do vizinho é sempre mais verde?

    Mas convenhamos: por mais que os Estados Unidos tenham uma tradição mais longa e uma indústria cinematográfica mais sólida que a nossa, nem tudo o que é produzido do outro lado do globo supera nossos produtos locais. Quem aí prefere As Branquelas a Central do Brasil? Afinal, por que o cinema americano seria o referencial único de qualidade, e não outros exemplos como o cinema francês, espanhol, belga, japonês? 

    Culpa da crise

    Em recente entrevista ao AdoroCinema, o diretor Cacá Diegues lançou outra possibilidade de interpretação, ligada especificamente aos últimos anos: a crise de confiança dos brasileiros no próprio país. Devido às reviravoltas políticas, às denúncias de corrupção e à desigualdade social, nós estaríamos rejeitando os produtos locais. Agora, mais do que nunca, o escapismo do filme estrangeiro seria irresistível para os brasileiros, que estariam escolhendo cenários e temas diferentes dos nossos.

    A crise também levaria a uma seletividade maior: entre pagar 20 reais, por exemplo, para ver uma produção nacional, ou os mesmos 20 reais para assistir a um blockbuster com explosões e efeitos especiais, o público apostaria no valor seguro da grande produção. O cinema brasileiro seria "arriscado" em tempo de vacas magras.

    Fazer muito com pouco

    Isso nos leva a um dado fundamental na discussão: fazer uma superprodução com heróis é fácil para quem tem US$250 milhões, caso do orçamento de Vingadores: Era de Ultron, mas nada fácil para quem dispõe de R$8 milhões, como é o caso dos filmes brasileiros de grande porte. Nós certamente temos técnicos, diretores e atores capazes de criar obras do mesmo porte, mas não temos a verba necessária. 

    Quem procurar por outras formas de cinema - arriscado, independente, de cinemas menores, fora dos shopping centers - vai descobrir obras de qualidade, como os excelentes Bingo - O Rei das Manhãs, Como Nossos Pais, Cidades Fantasmas e muitos outros, só para citar títulos de 2017. São filmes adequados à produção de que dispõem: eles não têm orçamentos multimilionários, mas também não pretendem ter.

    Marketing à americana

    Por isso mesmo, quando uma equipe brasileira luta durante anos para criar uma obra atraente, com efeitos visuais, sonoros ou locações de peso, o referencial acaba sendo a grande indústria de maior sucesso internacional no mundo, e maior ícone cultural no Brasil: a cultura de massa dos Estados Unidos. Se ambos os países tivessem os mesmos meios de produção, fazer um filme como os deles não seria um mérito. Mas criar uma obra bela, bem feita e empolgante com um orçamento dez ou cem vezes inferior é realmente uma astúcia a ser comemorada. "O que tem de mais brasileiro no filme é nosso orçamento", brincou o diretor Rafael Ribas sobre Lino.

    Obviamente, a comparação com o cinema gringo também serve como ferramenta promocional: para um público que consome Harry Potter sem pensar duas vezes, falar que Malasartes se parece com uma fantasia daquele país soa como acréscimo de valor ao filme. Para quem lota os cinemas para ver Annabelle ou It - A Coisa, dizer que o filme de terror brasileiro tem "cara de americano" significa, em última instância, sugerir que ele é bom. Nem sempre a comparação procede, mas isso é outro problema.

    Resta torcer por duas pequenas mudanças: primeiro, que a gente descubra os filmes excelente que já se faz, há muito tempo, no Brasil, e segundo, que os referenciais se multipliquem: além dos valores evidentes da indústria estadunidense, o público e os artistas ganharia muito olhando para outros modelos bem-sucedidos como os do cinema argentino, coreano, chinês ou francês, por exemplo. O mundo é muito maior do que Hollywood.

     

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