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    "Nosso cinema é um ato de teimosia e uma aposta para o futuro", afirma Thiago Mendonça, diretor de Jovens Infelizes

    Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita Não é um Urso que Dança venceu a 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

    Leo Lara / Universo Produção

    Grande vencedor da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Jovens Infelizes ou um Homem que Grita Não é um Urso que Dança revelou o talento do diretor estreante Thiago B. Mendonça, que filmou com grande energia e talento a vida de um grupo de artistas em São Paulo, misturando performance e atuação militante. Leia a nossa crítica.

    O AdoroCinema conversou em exclusividade com o diretor, que falou sobre as escolhas extremas desta obra e comentou sua expectativa para os próximos passos do cinema após o cobiçado troféu Barroco:

    Você ficou surpreso com a reação do público em Tiradentes?

    Thiago Mendonça: Sabia que o filme, para a nossa geração, geraria identificação, mas eu não sabia como ia funcionar com o pessoal mais velho. Isso foi muito legal. Estamos falando de uma experiência geracional muito própria, mas pelo contrário, foi muito legal que logo na saída da sessão as primeiras pessoas que vieram falar comigo foram do público mais velho.

    Jovens Infelizes resgata no cinema a noção de arte como elemento subversivo.

    Thiago Mendonça: Em São Paulo, isso não tem muito no cinema, mas tem no teatro e a gente vem dessas duas experiências. Todo o coletivo envolvido no processo tem um pé nesses dois lugares, quase todo mundo ali se formou na experiência teatral. Agora tem essa força muito grande dos coletivos de cinema, que têm uma potência incrível. Aliás, nesse festival passaram dois filmes feitos praticamente pelas mesmas pessoas (Jovens Infelizes e Filme de Aborto). São duas experiências que se comunicam muito, é lógico que cada um na sua linha de construção, do seu lugar de fala.

    Além disso, é relativamente mais barato produzir uma obra de teatro sobre o tema do que um longa-metragem.

    Thiago B. Mendonça: Pois é, mas a gente fez o filme sem dinheiro. A questão toda é que para chegarmos e fazermos o filme do jeito que queríamos, fizemos como se fosse uma peça teatral, no sentido de que tivemos muitos ensaios, reflexão e discussão de texto, inclusive de referências, como do Pasolini e de "Sociedade do Espetáculo" do Guy Debord. Vários textos permearam o processo, que era muito parecido com os processos teatrais que a gente experienciou.

    A ideia era essa também, a ideia de um experimento que desse conta das questões que a gente queria discutir: como vivenciar, hoje, uma experiência de liberdade, num momento onde existem cada vez mais fascistas, em que os horizontes estão cada vez mais rebaixados, onde nossa experiência histórica é cada vez mais perpassada por um discurso muito autoritário.

    Acredita que o filme será visto como um documento dos nossos tempos daqui a vinte, trinta anos?

    Thiago Mendonça: Eu espero estar completamente errado, mas acho que não é um documento. Os horizontes e as coisas estão piorando, as coisas estão muito piores. A gente achava que nunca teríamos algo tão escroto da polícia de São Paulo como na Copa do Mundo. Tudo piorou muito. Nas últimas manifestações do MPL (Movimento Passe Livre), a ação da polícia foi de uma violência gratuita, desnecessária, a ponto de não deixar mais os manifestantes andarem. O movimento foi lindo, a greve foi vitoriosa, mas a violência com os alunos das escolas... São crianças. A polícia passa de qualquer limite do que a gente poderia considerar aceitável e quem faz essas experiências de violência, de chacinas são justamente essa geração que resistiu à ditadura, que fez parte da formação dos dois partidos da redemocratização, pós-democratização, PSDB e PT, e hoje é uma geração que cumpre a mesma função que cumpria o Estado no seu tempo. 

    Tudo pode ser enquadrado.

    Thiago Mendonça: Tudo pode ser enquadrado. É um ciclo que está se fechando e o cinema que estamos fazendo é um cinema que tenta discutir esse lugar da crise, como se colocar, de maneira corporal mesmo. Porque estamos nas manifestações nesse momento. Não se pode falar que "é um absurdo a gente ir porque a gente vai se ferrar". A gente tem que ir, a gente tem que marcar o lugar.

    Neste contexto, o corpo se torna o símbolo de subversão por excelência. Como foi este trabalho com o elenco?

    Thiago Mendonça: Tínhamos muita ideia do que representava cada uma das cenas. Com exceção da primeira cena, que é quase uma festa, mais performática, as outras duas cenas coletivas de sexo são ritualísticas, seja na igreja seja no final, depois que a Ana vai embora. É um rito de conexão, de entrega total entre eles. Lógico que era uma tentativa de metaforizar o que é essa entrega ao coletivo, essa coisa de que a gente vai até o fim, até o talo, a gente vai até o nosso limite, o limite do corpo, o limite da vida, assim como esse coletivo tenta chegar ao limite entre a arte e a vida, uma coisa que perpassa todos os coletivos de cinema de São Paulo.

    As mulheres têm um papel especialmente forte no filme.

    Thiago Mendonça: Como o roteiro foi construído sendo um processo, as mulheres tinham muita voz nesse processo de construção. Em determinado momento, alguém lembrou que as mulheres teriam relações sexuais entre elas e os homens não. A homossexualidade era um tabu para o Basco, ator do filme. Mas ele foi até o talo também nessa experiência com homens. Ele citou que, de fato, sem este elemento, estaríamos fazendo uma construção fetichista. Se é a experiência de entrega total, então todos têm que fazer. 

    Como foi o processo de montagem? Ao mesmo tempo em que há uma história linear, de trás para frente, o filme também tem inserções e performances livres dentro da narrativa. 

    Thiago Mendonça: Fui eu que montei. Como tínhamos um desafio muito grande, o de contar de trás para frente a história, tinha que ser muito precisa a forma de colocar essas inserções porque poderia gerar muita confusão. Até porque a gente faz questão que cada passagem tenha durações diferentes, sem respeitar o que as pessoas estão esperando.

    O que eu inseri bastante no processo de montagem foram as cartelas, porque em alguns momentos precisava de um respiro, ou porque surgia algo importante e porque havia a brincadeira com as citações. A ordem das cenas já estava mais ou menos pensada. É lógico que não sabíamos como seriam as manifestações, isso não foi nada calculado. Eu tinha certeza, por exemplo, que a gente conseguiria filmar muito mais daquela manifestação à noite do que a gente conseguiu de fato.

    Ao mesmo tempo, vocês vão bem longe, chegando muito perto dos conflitos durante as manifestações.

    Thiago Mendonça: Eu não queria estar tão próximo de quando a coisa estoura. Foi uma experiência difícil nesse sentido também, porque ali a gente colocou a responsabilidade em colocar a corporeidade de todos ali em risco. Erramos no cálculo. Achávamos que a manifestação ia ser dispersada lá para baixo e então filmaríamos de longe, mas não, a coisa começou a pegar, a gente tava no meio e não tinha mais o que fazer. Não sabíamos no que iam dar as intervenções na rua, não tínhamos muita ideia de quais seriam as reações.

    No geral, já tínhamos uma estrutura muito fechada de como montar. A primeira versão do filme tinha duas horas e quarenta, então tivemos que enxugar muito, foi um processo dolorido porque muita coisa boa teve que cair fora, porque o ritmo tinha que ser muito preciso. A chance de o filme ficar arrastado na segunda metade era muito grande.

    Qual caminho Jovens Infelizes vai seguir agora?

    Thiago Mendonça: A gente não pensou nisso ainda. Acho muito difícil o filme ter uma história para além do circuito de festivais, mas tentamos passar os filmes porque para a gente talvez seja mais importante ter uma discussão, ter essa relação tête-a-tête com as pessoas e conseguir que esse filme seja também um processo de reflexão, de troca entre as pessoas que assistem. É lógico que Jovens Infelizes não vai passar facilmente em todos os espaços, é um filme que provoca. Ontem, muita gente saiu da sessão, a cada cena chocante que passava, tinha uma debandada.

    Acho que hoje o cinema que nós fazemos é um ato de teimosia e uma aposta para o futuro. Não temos nenhum caminho com o filme porque não temos nenhum caminho dentro do que está posto, do que se coloca enquanto proposta estético-política de quem está no poder. A gente está na contramão disso e, certamente, pagamos um preço por isso. Não somos inocentes. Acho que o futuro desse e de outros filmes que a gente faz é insistir para que ele exista independentemente do que as pessoas tentam colocar. A gente não vai fazer cinema diferente disso porque "a vida é assim". A gente não aceita que a vida é assim assim como os nossos personagens não aceitam.

    Não faria sentido tentar entrar exatamente no circuito comerical com um filme que é contra isso.

    Thiago Mendonça: A gente não interessa ao circuito comercial e tampouco eles nos interessam, acho que é um pouco isso. Estamos fazendo filmes de combate. Uma das piores heranças que temos da ditadura é justamente o que está na rede do audiovisual. A ditadura deixa duas heranças nefastas: uma é o sistema de telecomunicações tal qual conhecemos, oligopolizado e que massacra todo mundo desde a mais tenra infância e a outra é a lógica do "cinemão", da Embrafilme que coopta os diretores de esquerda e, daí, temos uma coisa completamente esquizofrência que são diretores ditos de esquerda querendo fazer cinema popular. Fazer filmes é lutar contra essa ordem e acho que temos que ter clareza disso, inclusive de quem são os nossos inimigos.

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