Nickel Boys
Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Nickel Boys

Indicado ao Oscar 2025, Nickel Boys se conecta a Ainda Estou Aqui enquanto cria exercício de empatia sobre drama racial

por Diego Souza Carlos

Pode demorar ou vir de diferentes maneiras, mas o entendimento do poder transformador da arte é parte natural da vida de todos. Seja através de um romance, no qual nos identificamos com determinadas situações, ou através das características culturais de certos personagens. Em conjunto das inúmeras possibilidades, a arte também pode ter um caráter de denúncia, de resistência. Assim como Ainda Estou Aqui é o resgate da memória de um período nefasto da história do Brasil, Nickel Boys surge como um veículo necessário de tenacidade.

Baseado no romance homônimo vencedor do Prêmio Pulitzer, o longa acompanha a aliança entre Elwood (Ethan Herisse) e Turner (Brandon Wilson), dois adolescentes afro-americanos que são enviados para um brutal reformatório juvenil na Flórida no ápice da implementação das leis segregacionistas de Jim Crow. A forte irmandade criada entre os dois forja um refúgio de esperança e carinho em meio aos horrores e às violências sofridas dentro e fora da detenção.

Enquanto Elwood cultiva em Turner uma nova e mais otimista perspectiva do mundo, Turner conhece a realidade desse mundo bárbaro e ensina a Elwood os truques necessários para sobreviver. Tudo isso tendo como pano de fundo o notável e iminente Movimento pelos Direitos Civis encabeçado por Martin Luther King, de um lado, e Malcolm X, do outro.

Nickel Boys apresenta nova ótica para drama racial

Amazon MGM Studios

Para filmes que apresentam relatos dolorosos, procura-se sempre apostar em cenas emblemáticas que representem todo o sofrimento e o sacrifício do ou dos protagonistas. O apoio no diálogo e na inventividade da direção são responsáveis por abraçar essa missão de transmitir toda a emoção vivida na trama, uma tarefa extremamente desafiadora para qualquer cineasta.

Nickel Boys, no entanto, não vai pelo caminho comum. Sob direção de RaMell Ross, de Independent Lens e Hale County This Morning, This Evening, o projeto incorpora a visão de Elwoo e Turner. A partir da perspectiva em primeira pessoa, a história é contada a partir da visão destes dois jovens, abrindo precedentes para uma exposição subjetiva dos acontecimentos, assim como uma atmosfera onírica que, eventualmente, adiciona elementos surreais à equação.

Ter os olhos dos personagens no lugar das lentes oferece uma experiência muito mais intimista ao público, quase como um exercício de se colocar na pele do outro para se aproximar do conceito de empatia. Embora possa causar estranhamento nos primeiros momentos, o recurso é facilmente incorporado à trama tornando-se responsável por uma experiência sensorial.

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Aqui, vemos como os amigos se observam, passam a se cuidar, a se admirar e a se proteger, mesmo com divergências. Acompanhamos os olhares da avó de Elwood, Hattie (Aunjanue Ellis), com doçura em muitos trechos - e ainda conseguimos enxergar sua perseverança visceral que representa tantas outras mulheres negras que abraçam suas famílias como leoas, sem perder a benevolência e o senso de justiça.

Através dos olhos dos garotos ainda sentimos o medo da violência e o temor por outros meninos como eles, bem como a forma como o racismo opera: tratando-se de uma história durante a segregação racial estadunidense, o tratamento entre garotos brancos e negros se dá de maneiras bem distintas. Enquanto os jovens infratores caucasianos ganhavam um quarto individual e um tratamento “camarada”, os garotos afro-americanos tinham uma vida análoga à escravidão.

Como Nickel Boys se conecta com Ainda Estou Aqui

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Em um momento da globalização no qual podemos acessar múltiplos lados de um mesmo acontecimento, cineastas enxergam a oportunidade de tirar o véu que apagou muitas vidas em diferentes períodos históricos. Ainda que os paralelos com Nickel Boys sejam mais precisos com projetos como Holocausto Brasileiro, produção baseada no livro-reportagem de Daniela Arbex sobre o Hospital Colônia de Barbacena, ou até mesmo em todas as obras produzidas sobre o Complexo Hospitalar do Juquery, é impossível não pensar no projeto de Walter Salles estrelado por Fernanda Torres.

Presente na corrida do Oscar, os dois filmes se preocupam em se aprofundar na exposição e na busca de um número surpreendente de pessoas desaparecidas. Enquanto Ainda Estou Aqui se posiciona durante a ditadura militar brasileira, momento responsável por ondas de violência e intolerância, Nickel Boys se atém ao período da segregação racial da década de 1960. Em ambos os casos, o legado da crueldade ainda se faz presente.

Ainda hoje existem investigações para descobrir o que houve com muitos jovens que desapareceram após serem internados em reformatórios como o apresentado no longa. Inclusive, apesar do longa ser inspirado em um romance fictício, a narrativa recebe inspiração na vida real. A base está nas obscuras histórias da Dozier School for Boys, reformatório fundado em 1900 na Flórida, Estados Unidos.

Um dos melhores filmes da temporada

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Levando em consideração todos os moldes atuais do cinema comercial, que podem se sustentar em roteiros ágeis, cenas dinâmicas que desembocam em registros megalomaníacos ou enredos devastadores e emocionais, é curioso pensar que o embrião do cinema muitas vezes é esquecido. Assim como Flow eleva a sétima arte em sua essência - privilegia-se a imagem frente à fala -, Nickel Boys enaltece tudo o que é visto através da própria linguagem.

Ter a perspectiva dos protagonistas como os olhos do próprio público é um convite para mergulhar nesse mundo com crueza. Mas, apesar da emulação do real, a direção aproveita essa escolha de linguagem para embalar a trama e abrir a perspectiva dos garotos e do público de maneira contemplativa. É possível sentir a melancolia, a felicidade e a dor a partir da maneira como a câmera se move e o jovem interage consigo mesmo e com os outros. Há também símbolos e mensagens que ajudam a criar essa atmosfera.

Uma vez que existem muitos filmes que se preocupam com todos as camadas que a escravidão e o racismo deixaram, o longa de RaMell Ross se destaca por suas escolhas estéticas e visuais que conversam diretamente com a trama. Enquanto coloca pontos de doçura e sutileza em um contexto adverso, o cineasta mostra que a esperança e a beleza podem surgir em meio ao tormento e à injustiça.

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