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    Uma História de Família
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    Uma História de Família

    A ficção sobre a ficção

    por Bruno Carmelo

    Family Romance LLC. se anuncia como um documentário sobre uma empresa japonesa de mesmo nome, cujos serviços consistem em alugar atores para servirem de maridos, pais ou amigos a pessoas em situação de carência afetiva. O filme, no entanto, navega por um registro muito menos claro do que se esperaria da linguagem documental, em virtude do alto grau de intervenção do cineasta no mundo ao redor. Werner Herzog não se limita à reencenação de fatos com pessoas reais, nem à justaposição de materiais de arquivo com cenas totalmente fictícias. Ele vai além ao construir uma situação a partir do zero, baseada em premissas pertinentes à realidade. Seria mais correto pensar no projeto enquanto ficção, ou ainda, uma ficção sobre outra ficção.

    Curiosamente, este abismo metalinguístico se aplica a um filme de aparência simplíssima. O cineasta utiliza a imagem digital de baixa qualidade, com a câmera na mão e captação de som beirando o amadorismo. Estes elementos conferem a impressão de naturalismo aos momentos em que um empresário (Ishii Yuichi) encontra a pré-adolescente Mahiro (Mahiro Tanimoto) numa praça, anuncia ser o pai da garota, e em seguida passa a visitá-la regularmente, simulando o pai real. Logo, o roteiro nos apresenta ao ator por trás da farsa – percebida, no entanto, como uma generosa proposta terapêutica a pessoas em situação de necessidade. O protagonista vende seus serviços de ator a outros clientes, porém os vínculos criados com a falsa filha tornam-se o centro da trama.

    O diretor poderia utilizar esta premissa para desenvolver um comentário potente sobre a multidão solitária, sobre a tendência da tecnologia a substituir seres humanos ou sobre a nossa relação com a ilusão do mundo virtual. O potencial crítico do filme seria imenso, fosse ele documentário, ficção ou qualquer grau de hibridismo entre os dois. No entanto, o sempre analítico e filosófico Herzog abre mão da tentativa de inserir estas pessoas num contexto mais amplo. Ele evita dar um passo atrás e responder a questões fundamentais: esta empresa seria a única do gênero no mercado? Como o trabalho influiria na vida pessoal dos funcionários da Family Romance LLC.? De que modo os clientes conheceriam este serviço, e o que os levaria a contratá-lo? Eles se sentiriam melhor uma vez terminada a intervenção?

    Surpreendentemente, o resultado embarca na ilusão proposta pela suposta empresa ao construir sua própria ficção. O cineasta cola a câmera no rosto dos atores, atingindo um grau de proximidade impensável ao documentário espontâneo. Além disso, emprega uma série de recursos incompatíveis com o acaso: o plano e o contraplano, a câmera que espera ao mesmo tempo no corredor de um prédio e dentro do apartamento onde a pessoa vai entrar, planos subjetivos dos personagens, diálogos explicativos para situar o espectador sobre o local onde se encontram ou os propósitos de cada cena. A descoberta de um hotel com robôs ou de cabines fotográficas que transformam a aparência dos fotografados permite dialogar com a cultura do simulacro, no entanto o discurso nunca vai além dos breves acenos a um painel sociológico mais amplo.

    Por fim, Family Romance LLC. deixa a impressão de um projeto inacabado, como se Herzog tivesse filmado um roteiro em fase inicial, sem dedicar o tempo necessário a aprofundar seu tema nem reunir as condições necessárias de produções. Esta parece uma oportunidade perdida de dialogar com questões essenciais à contemporaneidade, que o mesmo diretor já tinha dissecado em Eis os Delírios do Mundo Conectado, por exemplo. No domínio da ficção pura, o drama grego Alpes, de Yorgos Lanthimos, havia explorado as complexas implicações de se alugar atores para substituírem pessoas reais. Herzog, no entanto, é prejudicado pelo agenciamento apressado de linguagens ao propor um documentário tão singelo quanto superficial, junto de uma ficção que jamais ultrapassa o estágio da sugestão. 

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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