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    Papicha
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Papicha

    Por baixo dos véus

    por Bruno Carmelo

    A rebeldia é uma forma de resistência? Os filmes do 72º Festival de Cannes têm mostrado uma série de jovens cujo posicionamento político se resume à permanência em ambiente hostil: apesar dos bombardeios diários, a diretora Waad Al-Khateab se recusava a abandonar Alepo em For Sama, o jovem Sebastian se negava a seguir as regras de uma sociedade falida, embora se mantivesse dentro dela, em Sorry We Missed You, e agora Nedjma (Lyna Khoudri) ignora as ordens para portar o hijab e abandonar o curso universitário em Papicha, ainda que pretenda permanecer na Argélia. Nestes casos, a política não se faz na rua, de modo organizado e coletivo, com placas e gritos de guerra. O combate ocorre na esfera privada, no dia a dia, pelo não cumprimento das leis impostas.

    Além de se recusar a vestir o véu, a protagonista estuda moda e ostenta uma visão progressista sobre as mulheres. A prática de desenhar e vestir as clientes implica no direito de escolha destas personagens sobre seus corpos ao invés de seguir as leis castradoras impostas pelos homens. Talvez por isso o principal motor de conflito seja a intenção de elaborar um pequeno desfile de moda dentro da faculdade, no exato momento em que as mulheres são confinadas ao lar. Para os olhares ocidentais, o ato organizado para uma dúzia de espectadores parece uma brincadeira, mas para o país árabe nos anos 1990, em plena ascensão do radicalismo islâmico, este gesto constituía uma afronta ao governo.

    A diretora Mounia Meddour faz bom uso do potencial estético e narrativo dos tecidos. Os rolos de material são utilizados tanto para esconder as mulheres quanto para deixá-las mais belas; eles podem ocultar os cabelos dos olhares masculinos ou ocultar uma arma por baixo das roupas. O tecido é um elemento de decência e de indecência, assim como as facas podem ser ferramentas de uso diário ou objetos que provocam a morte. A roupa se torna uma arma, sendo tingido sucessivas vezes ao longo da trama pelo sangue, pela terra, pelas tintas; e então rasgado, costurado, combinado. Papicha constrói uma metáfora simples e funcional sobre esta peça do vestuário para demonstrar a dinâmica social.

    Em paralelo, esta obra de uma diretora estreante surpreende pela maturidade da direção. Meddour emprega um estilo arriscado: a câmera na mão, muito próxima dos rostos, tremendo de uma personagem à outra. Esta forma de imersão e urgência pode recair facilmente no fetichismo da marginalidade, porém neste caso demonstra um notável cuidado na composição – vide duas cenas específicas, uma após um tiro fatal, e outra, logo depois de um atentado. Talvez a sobreposição de duas cenas de praia prejudique o impacto de ambas, mas de modo geral, o filme atinge um grau de realismo excepcionalmente bem delineado. Em paralelo, as jovens atrizes são muito bem dirigidas, demonstrando conforto com os diálogos, naturalidade nos gestos e expressões, através de uma preciosa variação emocional. A teimosa protagonista demonstra fragilidade quando confrontada, o que atenua sua postura possivelmente heroica e faz dela uma figura mais verossímil.

    Talvez alguns elementos de roteiro possam ser contestados: a inocência da jovem que anuncia aos adversários a organização do desfile proibido, a falta de preparo para eventuais ataques, a ausência quase total da família em um ambiente conservador, o didatismo na catalogação dos males que podem afetar as mulheres num meio de repressão: a proibição do aborto, a obrigação do casamento, a recusa do prazer sexual. A cineasta representa diversos problemas numa narrativa só, tornando esta trajetória exemplar demais, e mesmo demonstrativa. No entanto, este pode ser o efeito colateral de uma obra verdadeiramente ambiciosa, feminista e humanista, com vocação a pintar um grande mosaico social ao invés de se limitar ao caso isolado. A rebeldia de Nedjma se estende a uma forma de cinema igualmente desprovido de concessões. O caráter juvenil, ou mesmo pueril de Papicha não deixa de constituir uma parte de sua qualidade.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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    Comentários

    • Cleide Santaella
      Filme denso, mas com final diluído!! Simplista o seu fim
    • Marina T.
      Filme extremamente emocionante ainda mais em um momento que vemos a religião ser usada contra as pessoas no nosso país e na américa latina.
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