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    Soldado Estrangeiro
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Soldado Estrangeiro

    A grama do vizinho

    por Bruno Carmelo

    Este documentário percorre um caminho curioso, ocultado ao público inicialmente. Quando vemos o rosto de Bruno Silva pela primeira vez, não sabemos que a narrativa pretende apresentar três soldados, cada um num segmento distinto. Do mesmo modo, não percebemos que a estrutura adota uma temporalidade própria: o primeiro caso mostra um soldado brasileiro prestes a se alistar num exército estrangeiro, o segundo caso registra o soldado em plena atividade, e o terceiro capta a vida de um brasileiro após sair da marinha de outro país. Acompanhamos o antes, o durante e o depois, partindo do sonho à desilusão. Soldado Estrangeiro possui uma metodologia bastante precisa, mas não a indica via letreiros ou narração. O espectador embarca numa jornada de surpresas.

    Embora uma das primeiras perguntas escutadas no filme seja “Por que você quer ingressar num exército estrangeiro?”, disparada por um oficial francês a Bruno, o filme não se concentra apenas nas razões que levam uma pessoa a combater em nome de uma nação alheia. Os motivos ficam em segundo plano, acompanhados por justificativas práticas: um personagem enxerga na viagem uma oportunidade de emprego, o outro comemora os descontos decorrentes do cargo de militar. Não saberemos o que eles pensam da política nacional ou internacional, como percebem as noções de terrorismo ou o fato de tirarem a vida de civis em nome de uma pátria alheia. “Sou proibido de falar sobre isso”, explica Mário Wasercjer, soldado em Israel. Não parece haver qualquer conexão afetiva específica com aqueles países, apenas um senso de oportunidade, um emprego que poderia ser qualquer outro, em qualquer lugar.

    O documentário privilegia a noção de processo, de experiência. Os diretores José JoffilyPedro Rossi fazem o que pouquíssimos cineastas fariam: eles andam com Bruno pelo aeroporto, atravessam o Duty Free com ele, acompanham o voo, andam pelas ruas de Paris com o novo soldado. Depois, presenciam Mário lavando suas roupas, e Felipe de Almeida meditando em casa, assistindo a filmes em seu computador. Em outras palavras, os cineastas se importam menos com fatos e ações – a data de chegada no país distante, o passo a passo da entrada no exército, o histórico de combates – do que com o registro de sensações, o contato imediato com os corpos, os rostos, os olhares. A câmera extrai momentos muito expressivos de Bruno vendo a mãe arrumar sua mala, ou Felipe explicando a um morador de rua sua importância social enquanto veterano de guerra. Nestes casos, o registro do incômodo ou do silêncio diz muito mais do que qualquer explicação.

    Ao mesmo tempo, a olhar da câmera se encontra num posicionamento um tanto curioso em relação aos personagens. Com poucas entrevistas diretas e sem narração ou demais ferramentas explicativas, Joffily e Rossi adotam uma observação silenciosa. No entanto, estão sempre perto demais dos personagens para serem efetivamente invisíveis. A grande quantidade de close-ups e de câmeras seguindo o trio pelas ruas transmite uma proximidade asfixiante, gerando certa impressão de ficcionalização do resultado: é difícil acreditar que Bruno, o oficial francês e o tradutor se portem da maneira corriqueira com a câmera colada a seus rostos, e Mário deixa a impressão de estar de certo modo atuando, exagerando sua intimidade com os colegas e sua virilidade para as câmeras.

    Este comportamento poderia sem bem explorado pelo projeto, em chave metalinguística (ou seja, analisando a transformação que o cinema produz num meio codificado como o exército), porém os diretores preferem não fazê-lo. A abordagem é afetuosa demais para imprimir qualquer crítica ou ironia em relação a estes brasileiros e à instituição militar como um todo. O filme evita transformar os protagonistas em objetos de estudo, tampouco os utiliza como forma de comprovar uma hipótese prévia. A conclusão aponta para uma decepção diante do sonho estrangeiro, mas os diretores parecem descobrir este desfecho junto de seus personagens, ao lado deles.

    O projeto ainda surpreende pela coesão estética: é impressionante a fluidez da montagem, a semelhança dos enquadramentos ao longo dos três segmentos em países distintos. O som traz um pouco de eco em determinados momentos – logo a cena inicial, dentro do escritório francês -, mas se mostra surpreendentemente limpo em lugares abertos como um parque durante a conversa com Felipe. O resultado seria ainda mais impactante caso passássemos mais tempo com cada soldado, para perceber a evolução de seus trabalhos, suas percepções anos mais tarde, o futuro de cada um. No entanto, através de três pessoas distintas, os diretores criam uma trajetória única, como se Bruno viesse a passar pela experiência de Mário, com as consequências futuras da vida de Felipe.

    A impressão de ficcionalização também provém deste personagem imaginário, o “soldado estrangeiro” universal, obtido a partir da excelente montagem de Jordana Berg. O espectador não descobrirá muito sobre patriotismo ou procedimentos legais de admissão em outros países, mas perceberá a concessão tácita a regras e ordens, a vontade de pertencer a outra realidade, a cobrança pessoal de se estimar contente por possuir um salário e uma função social. Estes homens encontram na vivência distinta um senso de pertencimento, um valor reconhecido pela sociedade – o tal status que Felipe pronuncia a plenos pulmões, em sotaque americano. A situação muito específica dos protagonistas se torna mais acessível a partir do momento em que observamos três homens invisíveis em seus lugares de origem, buscando uma oportunidade de se destacarem, se sentirem importantes. A aceitação quase inconteste às regras dos países alheios se transforma em jornada pessoal de transformação.

    Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.

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