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    Dafne
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Dafne

    Cinema de gentileza

    por Bruno Carmelo

    O maior desafio dos projetos sobre pessoas com Síndrome de Down – e sobre grupos sociais minoritários, de modo geral – se encontra na questão do lugar de fala, ou ainda, no problema da equivalência do olhar. Como filmar pessoas em situação desprivilegiada sem adotar uma posição paternalista, condescendente? Sem tratá-las de modo exótico, fetichista, ou ainda sem expressar um olhar de piedade?  Qual seria a maneira mais apropriada de representar a diferença, entre respeitá-la por suas singularidades ou considerá-la como igual?

    A tarefa não é fácil, mas o drama italiano dirigido por Federico Bondi evita as principais armadilhas. Sua primeira estratégia consiste em entregar o olhar da trama a Dafne (Carolina Raspanti), jovem com Síndrome de Down que acaba de perder a mãe. Ela é vista como pessoa com alto grau de independência, tanto na história (que a mostra trabalhando, andando sozinha pela cidade, coordenando viagens) quanto na própria direção do filme, que confia em sua atriz a ponto de colar a câmera no rosto durante a maior parte do tempo, e ainda lhe dar certa liberdade para brincar com diálogos e gestos. A personagem principal aparenta ser uma figura bastante livre, espontânea, cujos comentários sarcásticos são captados com prazer pelas câmeras.

    O tratamento piedoso é evitado ao retirar a questão genética do centro da trama. Dafne tem Síndrome de Down, mas este não é o tema do filme, tampouco constitui um obstáculo. O roteiro faz breve alusão a momentos de preconceito, mas prefere acreditar em pessoas majoritariamente benevolentes que cruzam o caminho da garota e de seu pai, Luigi (Antonio Piovanelli). O problema de ambos se encontra na superação do luto da mãe/esposa, quando precisam cuidar um do outro – e Dafne, para a nossa surpresa, torna-se mais importante ao pai do que este a ela. Para evitar o sentimentalismo, a câmera filma os personagens de costas, de longe, ou então retira o som durante um momento de choro. Parece ser importante ao cineasta que Dafne, o pai e os familiares sejam vistos como combatentes ao invés de vítimas.

    Além disso, o humor ajuda a equilibrar o teor meio infantilizado com que se costuma tratar as pessoas com síndromes ou deficiências. Dafne possui temperamento forte, destilando comentários sagazes sobre as pessoas ao redor e sobre o comportamento do pai. Numa cena de baile, o roteiro trata de nos lembrar que ela não constitui uma exceção, pelo contrário: existem muitas outras pessoas nas mesmas condições, e plenamente capazes de levar uma vida independente. Estas cenas são conduzidas por meio de uma câmera realista, seguindo os personagens à altura do ombro, em discreta movimentação e luz natural, como se não quisessem chamar atenção nem roubar o protagonismo. Percebe-se uma humildade no olhar, que se constrói como mero suporte do tema – o que resulta numa estética tão precisa quanto simples, acadêmica.

    Em alguns momentos, o roteiro não se priva da tentação de extrair um humor um pouco fácil da personagem (o flerte com os policiais, a festa dos colegas de trabalho). Mesmo assim, sempre rimos com Dafne, e não dela. Além disso, o Down e suas consequências jamais são transformados em motor de comicidade. Paralelamente, a montagem torna-se didática demais rumo ao final, quando opõe, por exemplo, a rotina ativa da protagonista à tristeza do pai. Ao menos, os atores ajudam muito na tarefa: não apenas Raspanti demonstra um despojamento louvável, mas Piovanelli, em especial, efetua um trabalho excelente através de silêncios e pequenas expressões. Dafne se encerra como um cinema gentil, para o qual importa mais o afeto e a proximidade com as pessoas do que a exploração de suas dificuldades. Trata-se de um olhar carregado de otimismo, o que não implica, felizmente, num ponto de vista ingênuo sobre o mundo.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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