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    À Queima-Roupa
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    À Queima-Roupa

    Afinidades eletivas

    por Bruno Carmelo

    O primeiro aspecto que desperta atenção nesta comédia de ação é o porte de suas ambições artísticas. À Queima-Roupa parte de uma produção de recursos visivelmente limitados, sem procurar subverter as principais regras dos gêneros e subgêneros explorados: o filme de vingança à la Busca Implacável, a dupla cômica improvável investigando crimes como em A Hora do Rush, a trama do azarão que enfrenta as mais poderosas gangues locais etc. Mesmo assim, o diretor Joe Lynch, de currículo bastante modesto, utiliza esta oportunidade para demonstrar todo o seu potencial atrás das câmeras.

    Assim, a fuga inicial de Abe (Frank Grillo) é abordada com grande fluidez de câmera e uso atípico de lentes; a preparação de uma mochila é vista através de um longo plano-sequência giratório com o enfermeiro Paul (Anthony Mackie) selecionando objetos ao redor do cômodo; e mesmo uma simples chegada ao hospital, fora de uma ocasião de urgência, é filmada com a câmera na altura dos pés dos atores, em contra-plongée, com objetivas grandes-angulares para criar impressão de amplitude contra o céu da cidade. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, incluindo o uso de luz neon durante o dia e as imagens de câmeras de segurança. Lynch às vezes se complica até demais no malabarismo das câmeras, mas apresenta uma saudável vontade de experimentar composições improváveis para situações aparentemente banais.   

    Além disso, os atores principais estão muito confortáveis em seus papéis. Frank Grillo já interpretou inúmeras vezes o vilão impiedoso, mas aqui apenas encarna um sujeito solitário cuja maior preocupação constitui, para a nossa surpresa, o amor do irmão. Anthony Mackie foge à envergadura dos super-heróis para compor um homem comum, sem preparo para a luta e cujas ações soam ora perspicazes, ora imprudentes, como convém a um homem comum em situação de desespero. Mesmo a esposa Taryn (Teyonah Parris), ao invés da habitual vítima esperando para ser salva, demonstra-se muito mais combativa e inteligente do que de costume. O projeto atenua os maniqueísmos (o belo caráter dos salvadores, a fragilidade dos sequestrados) para produzir uma trama mais interessante sobre a corrupção do dia a dia, aquela confundida com esperteza, malandragem, com a vontade de levar a melhor.

    Isso não significa que Lynch produza alguma análise sociológica complexa, muito pelo contrário: o roteiro flerta frequentemente com a conclusão de que “todo mundo é ladrão” e “ninguém presta de fato”, algo felizmente atenuado pela gradativa amizade que desenvolve entre os personagens principais. Nasce entre Abe e Paul um laço menos relacionado à afinidade do que à necessidade: eles precisam um do outro, e por isso se protegem. Esta é uma configuração mais plausível do que apostar numa transformação moral de cada um deles, ou seja, no apelo ao senso de coletividade pelas vias do afeto. Mesmo dentro das gangues e delegacias corrompidas até os ossos – aliás, as duas se parecem muito nesta história – as pessoas se unem por senso de oportunidade, estratégia ou necessidade. Como se percebe pelo casal Paul-Taryn e pelos irmãos Abe-Mateo (Christian Cooke), o amor está reservado à esfera doméstica, familiar, contra a selva da vida pública. Existe um ponto de vista bastante amargo por trás desta fábula de ares pré-apocalípticos.

    À Queima-Roupa se transforma bastante com a chegada de Big D (Markice Moore), grande chefe do crime que revela ser, na verdade, um rapaz franzino, de voz aguda e uma paixão incontrolável por cinema. Dentro de uma narrativa que já apostava no humor orgânico das diferenças entre o ladrão profissional (Abe) e o amador (Paul), a chegada de Big D investe numa comicidade mais sublinhada e menos orgânica. Por mais divertido que seja ver o gângster citar filmes e transformar um plano sangrento em cena de cinema, estes trechos soam desconexos do resto da trama em termos de tom e estilo. Além disso, o espectador precisa ser bastante condescendente com as “licenças poéticas” de ordem médica (uma fraquíssima cena de parto) e com os flashbacks que esclarecem muito pouco sobre o passado dos personagens.

    De certo modo, a produção se enfraquece cada vez que tira a atenção da dupla central para se concentrar nos problemas da policial carrasca ou do gângster engraçado. Mesmo assim, os momentos com Paul e Abe juntos são majoritários, e elevados tanto pela qualidade discreta da ação quanto pelo ritmo dos diálogos, que não se levam muito a sério. É interessante pensar que, na maioria das produções policiais, a história se interrompe quando o crime é resolvido e os responsáveis são punidos. Aqui, interessa a Lynch mostrar o desenlace de cada personagem e o valor da amizade improvável, que não se transforma numa afinidade cotidiana, mas numa espécie de cicatriz que marcará o percurso dos dois protagonistas para sempre.

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