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    Intervenção
    Críticas AdoroCinema
    1,5
    Ruim
    Intervenção

    Violência pincelada

    por Sarah Lyra

    Um dos temas mais abordados no cinema brasileiro, nos últimos anos, é a segurança pública no estado do Rio de Janeiro, mais especificamente na capital fluminense. Não são raras as obras, de ficção ou documentário, que tentam oferecer algum tipo de elucidação através de seus recortes, o que é louvável. Certamente, diante de um assunto tão complexo, o Cinema parece sempre ter algo válido a dizer, independentemente da qualidade do filme em si. No entanto, é alarmante ver como algumas obras bem intencionadas se distanciam tanto de sua denúncia que por vezes acabam reforçando estereótipos sobre a violência, trazendo mais desinformação do que clareza, o que, infelizmente, é o que acontece em Intervenção.

    No que diz respeito à forma, o filme acerta ao propor ângulos e olhares diferentes sobre os confrontos na periferia. Logo na primeira cena, quando um blindado é alvo de tiros, o diretor Caio Cobra é inteligente ao evidenciar um homem à distância através de um buraco na estrutura do veículo, mostrando o perigo e gerando tensão sem cair no óbvio. O mesmo pode se dizer da menção à cultura do mundo virtual, onde há a urgência de postagem imediata sobre qualquer acontecimento cotidiano, incluindo um serviço de ronda; e das cápsulas de bala caindo sobre a bíblia momentos depois. O problema é que todas as escolhas mencionadas acima se mostram estritamente estéticas, já que Cobra jamais retoma essas temáticas para aprofundá-las minimamente. Como a fé permeia a vida e trabalho desses policiais? Como eles lidam com as inevitáveis contradições que a crença no Cristianismo acarreta? O que a inserção no ambiente virtual comunica sobre a violência urbana? Que recorte é feito nessas postagens sobre a vida nas comunidades?

    De maneira geral, os personagens são apresentados para desempenhar papéis específicos, sem muito espaço para nuances serem trabalhadas ou suas personalidades desenvolvidas. Larissa (Bianca Comparato) é a jovem idealista que acaba de entrar para a polícia e ainda acredita que pode fazer a diferença na vida da população. A outro membro da Unidade de Polícia Pacificadora cabe a função vilanesca, é ele quem vai protagonizar, aparentemente sem culpa, qualquer ação moralmente questionável por parte da polícia. E se há um personagem que transita minimamente entre o certo e errado com mais substância é Douglas (Marcos Palmeira), o chefe que se preocupa com a segurança de seus comandados ao mesmo tempo em que faz vista grossa para certos delitos na comunidade.

    Talvez a cena mais reveladora dessa tensão entre policiais e criminosos esteja representada na interação de Douglas com um dos membros do tráfico, quando os dois se sentam para tomar um “cafezinho”. A cordialidade se confunde ao tom de intimidação, e é interessante ver o trabalho dos atores durante o diálogo, como se algo estivesse prestes a explodir a qualquer momento, o que certamente resultaria em um massacre, já que tanto o policial quanto o criminoso estão cercados de aliados armados.

    Igualmente válida é a tentativa de retratar Douglas como um policial cínico, mas carismático, que acaba se tornando engraçado pela inversão de lógica absurda contida em seus ensinamentos para a equipe. “A gente está aqui para pacificar, então deixa todo mundo em paz”, diz ele após Larissa apreender uma moto de forma legal ao constatar a ausência de documentação do motorista e do veículo. Claramente, o fato de Douglas ser o único capaz de entender a necessidade de fazer vista grossa para algumas questões é um sintoma de um estado ineficiente, que não preenche as UPPs com os recursos necessários para que um trabalho sério seja feito. O problema é que o longa, em vez de se apoiar nessa crítica, transforma Douglas em uma espécie de herói.

    Essa dificuldade do roteiro em não exaltar o chefe da unidade fica ainda mais evidente quando um grave erro é cometido por Larissa durante uma perseguição, e é ele quem está disposto a fazer o trabalho sujo de forjar a cena de um crime para salvar a colega. Diante de uma situação como esta, que acontece frequentemente nas comunidades do Rio — jovens desarmados levando balas perdidas —, o roteiro alivia a escolha contestável de Douglas ao deixar claro que a vítima atingida tinha sido vista anterioramente com uma arma, o que é possível identificar no primeiro ato do filme. Com isso, o roteiro está implicitamente dizendo que a vida daquela pessoa não importa tanto, já que, se estava armada, provavelmente mereceu o destino que teve. Uma visão não apenas simplista como perigosa ao retratar a complexidade dessas relações.

    Desse acontecimento envolvendo Larissa em diante, o longa se torna cada vez mais problemático em seu discurso. Todos parecem indignados com o vazamento de um vídeo que mostra o momento exato em que Douglas forja a cena, mas o filme nos coloca imediatamente do lado da polícia sem qualquer tipo de problematização nessa abordagem, a ponto de o personagem de Palmeira dar um depoimento exaltado em que critica publicamente o papel da imprensa em julgar as ações da polícia, como se ele fosse um grande injustiçado pelas consequências de seus atos — esta cena, em particular, deixa em evidência a importância da direção de atores, já que, aqui, os figurantes parecem completamente desconectados com o que a cena se propunha.

    Mas é com Larissa que Intervenção realmente falha. A ideia era mostrar como a crueldade da rotina policial transformaria a menina doce e idealista em alguém duro e praticamente irreconhecível em termos de conduta. O primeiro problema é que essa mudança nunca é explorada, de fato. Quando a garota finalmente se contradiz, é mais por conta de um acontecimento específico do que uma mudança de mentalidade com base em todos os absurdos vistos na UPP. O segundo é que, mesmo após ela cometer uma série de abusos de autoridade, o filme a trata como uma salvadora disposta a se sacrificar em prol de um bem maior. Seu plano final, que arranja tempo até para questionar uma importante figura do judiciário, consiste, essencialmente, em fazer um discurso edificante sobre o papel do estado, e como este não está sendo cumprido.

    A lição de moral, além de simplista e excessivamente didática, não apresenta qualquer tipo de análise crítica sobre os conflitos apresentados até então, enquanto Larissa, uma protagonista extremamente problemática em sua concepção, é aplaudida como um símbolo raso de mudança. Em sua tentativa de conversar com todos os agentes da violência urbana, Intervenção acaba não se comunicando com nenhum.

    Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.

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    Comentários

    • Giselle Reis
      Perfeita a análise. Parabéns!
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