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    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
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    A realidade do garoto branco

    por Bruno Carmelo

    O espectador percebe desde as primeiras cenas que o caminho de Paul (Fionn Whitehead) se cruzará com a cena gay e negra de Nova York. O primeiro terço da trama é inteiramente composto por acenos premonitórios à homossexualidade e transexualidade: Paul admira uma bela mulher trans, seu amigo pergunta se ele é gay, depois ameaça beijá-lo, de brincadeira, e mais tarde empurra uma mulher para o seu colo. Em seguida, os amigos comentam sobre a bunda um do outro. Durante a noite, Paul é o único a perceber, dentro do abrigo onde vive, a presença de um jovem negro dançando em estilo vogue, com o som altíssimo pelos corredores. O protagonista é atraído magneticamente a este núcleo, o único a justificar sua existência na trama. Ele presencia cenas que mais ninguém vê, entra com facilidade em bailes que os locais desconhecem.

    Por mais que Port Authority busque a espontaneidade e o realismo, a abordagem é prejudicada pela construção romântica do destino, sem falar no amor impossível entre Paul, que trabalha despejando pessoas, e Wye (Leyna Bloom), garota trans prestes a ser despejada. (Ganha um doce quem adivinhar o homem escolhido para fazer a expulsão da jovem). Os personagens são reduzidos a descrições psicológicas bastante simples: Paul já foi preso e não possui uma família próxima, Wye vive numa república com as “irmãs” do Kiki, e também sofre rejeição pela identidade trans. O encontro entre eles é inevitável, certeiro, fazendo com que o garoto branco seja cautelosamente introduzido num gueto tipicamente negro, gay e marginal.

    Na ausência do trabalho psicológico, o que mais interessa a diretora Danielle Lessovitz é a exterioridade: os corpos dançando, o ritmo frenético do Kiki, as roupas, os olhares. Para tal, extrapola a cartilha “cool” do cinema indie americano. Através da fotografia lavada e da câmera excessivamente tremida, busca captar um registro da instabilidade momentânea, em planos muito próximos, oscilando entre os corpos do grupo. O resultado transparece o fetiche da marginalidade: os garotos estão sempre suados, oleosos, com camisetas rasgadas e sujas, mesmo quando se lavam no abrigo, enquanto os personagens LGBT dançam em câmera lenta, sob a luz de neon, com a pele brilhando em meio à névoa sensual e à música lânguida. Esta escolha produz o efeito incômodo de que estas pessoas interessam mais por seu potencial estético do que por sua individualidade.

    Ainda mais incômoda é a escolha de colocar um garoto branco como protagonista do retrato sobre a comunidade negra e gay/lésbica/trans. Quando acontecimentos graves afetam as famílias de performers, a câmera permanece ao lado de Paul, em seu sofrimento silencioso, como se fosse ele a verdadeira vítima. Existe um aspecto ético contestável na decisão de se apiedar sobre Paul enquanto Wye tem seu apartamento invadido, ou quanto Tekay sofre um acidente. As questões da “passabilidade” e do pertencimento social são abordadas superficialmente: Wye é uma menina trans que se passa facilmente por cisgênero, conseguindo frequentar círculos sociais onde outras trans não iriam, enquanto Paul, por ser um jovem branco, transita com facilidade no círculo homofóbico liderado por Lee (McCaul Lombardi) e ainda deseja ser aceito entre os negros, como se fosse um deles.

    O resultado se revela menos uma ode à união do que uma conciliação forçada. “White boy realness” é a categoria que as irmãs sugerem para o aspirante a performer Kiki, de brincadeira, ainda que o filme acene realmente a essa possibilidade. Diante de conflitos sociais extremamente complexos, Port Authority suspende magicamente as diferenças para acreditar na permeabilidade entre classes sociais, dependendo apenas da boa vontade. Cabe aos negros, rejeitados e minoritários, abrir espaço ao garoto branco. Para um filme tão atento a uma realidade específica, a ingenuidade dominante (o desconhecimento de Paul sobre a transexualidade da namorada, a passividade diante do comportamento de Lee) soa contraproducente.

    Graças ao ativismo LGBT, o fato de usar indivíduos marginais como figuras exemplares para tornar os homens brancos pessoas melhores não é mais aceitável. Lessovitz toma a boa decisão de escalar uma atriz trans para o papel trans – e Leyna Bloom se sai muito bem, a propósito -, além de apresentar o cenário Kiki como uma cultura rica e diversificada. No entanto, ainda relega estas figuras à condição de cenário, orbitando em torno da jornada de autodescoberta do jovem branco.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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