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    Ela Disse
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Ela Disse

    O peso do silêncio

    por Aline Pereira

    Por volta de 2017, o movimento #MeToo deu projeção global e inédita à uma questão antiga e enraizada na sociedade: é incalculável o número de mulheres que sofrem assédio sexual no ambiente de trabalho e, ao contrário do que se possa pensar, nem as maiores celebridades do mundo estão a salvo da violência. Gwyneth Paltrow, Jennifer Lawrence, Angelina Jolie, entre outras estrelas de Hollywood, vieram a público denunciar casos de abusos e, em uma onda inédita, diversas atrizes, produtoras, assistentes, entre outras profissionais da indústria cinematográfica apontaram para uma figura em comum: Harvey Weinstein, um dos maiores manda-chuva do cinema norte-americano.

    Esta é a história contada em Ela Disse, filme que se baseia em um livro de mesmo nome e acompanha duas repórteres do jornal The New York Times, Megan Twohey e Jodi Kantor, responsáveis pela reportagem que expôs Harvey Weinstein. Produtor de filmes como Gangues de Nova YorkShakespeare Apaixonado e O Senhor dos Anéis, Weinstein recebeu diversas acusações de estupro e assédio (dos anos 90 até 2015!), que começaram a vir à tona a partir da publicação do New York Times e acabaram levando a uma sentença de mais de 20 anos de prisão.

    Jornalismo no cinema: profissional apaixonado contra o pesadelo da burocracia

    Títulos como o clássico Todos os Homens do Presidente provam que há algo de muito fascinante em histórias sobre jornalismo. Neles, repórteres se tornam os representantes reais da justiça e da perseverança contra um inimigos implacáveis: o poder e a burocracia. Não é diferente com Ela Disse, em que é impossível não torcer por Megan e Jodi e, graças a um grande trabalho de atuação de Carey Mulligan e Zoe Kazan, se sensibilizar com o custo altíssimo de revelar verdades inconvenientes.

    Sendo um dos homens mais poderosos do mundo, Harvey Weinstein parecia blindado, tanto por sua própria influência, quanto pela estrutura de uma sociedade construída para privilegiar pessoas como ele. Nesse sentido, as repórteres precisaram enfrentar trabalhos hercúleos para trazer as denúncias à tona, do muro jurídico, político e social levantado ao redor de Weinstein, ao fator principal aqui dessa história: convencer as vítimas a virem à tona - e por conta própria.

    Em dramas sobre crimes reais, a maneira como as vítimas são inseridas na história é quase sempre uma ponto de atrito e não são raros os casos em que as pessoas envolvidas tenham sua história espetacularizada (em 2022, por exemplo, esta abordagem foi apontada no documentário da Netflix Dahmer: Um Canibal Americano). É um alívio ver que Ela Disse não se deixa cair nessa armadilha e parece estar alerta, o tempo todo, a seu verdadeiro propósito: a ideia não é explorar a tragédia dos abusos individuais, mas propor ao público uma reflexão sobre a complexidade que envolve o ator de falar sobre o crime e, mais ainda, levar as denúncias adiante.

    Ela Disse é um retrato sobre o peso do silêncio

    Não é difícil compreender os motivos pelos quais as denúncias contra Harvey Weinstein demoraram tanto para aparecer e o filme nos pega pelas mãos para explicar. A investigação do New York Times revela que o produtor fez dezenas de acordos de confidencialidade para silenciar vítimas que tentaram denunciá-lo e, quando não, boicotou as carreiras profissionais de atrizes e assistentes, que acabaram sendo forçadas a recuar. No topo de tudo isso, claro, está o fator credibilidade: se no século 21 ainda há uma resistência enorme a mulheres que denunciam seus abusadores, a questão era ainda pior nas décadas passadas.

    A dor e as consequências desse silêncio são palpáveis em Ela Disse: quando o longa nos mostra as vítimas de Harvey Weinstein nos anos 90, fica claro que a violência nunca é superada e que pesa ainda mais sobre o ombro de mulheres que nunca puderam falar sobre isso - em um dos casos mais impactantes, conhecemos uma ex-assistente do produtor que foi proibida de falar sobre o abuso que sofreu até mesmo com a família ou em terapia. É assustador não só por ser real, mas por ser uma realidade tão visível e tão difícil de ser superada.

    Mais do que isso, é sufocante a sensação de que a violência está longe de ser um problema só das vítimas - é como se a dor se infiltrasse também pelas jornalistas, cujas histórias pessoais são atravessadas pelo trabalho que estão fazendo. Enquanto isso, como público, é incômoda a sensação de “participar” da história como testemunhas silenciosas. 

    Aqui, vale ainda destacar alguns takes "simples", mas perturbadores. O filme traz áudios reais de Harvey Weinstein e das vítimas, que surgem no filme em cenas “vazias” de personagens: em alguns momentos, as tomadas feitas em desérticos e frios corredores de hotel (onde muitas vítimas relataram ter sofrido abusos) destacam o sentimento de solidão e a frieza com que os casos foram tratados durante muito tempo.

    Falta aprofundamento individual no filme

    Embora a história seja impactante por si só, a impressão é de que Ela Disse poderia se beneficiar de uma dramaticidade mais aprofundada de suas protagonistas. Tanto Megan quanto Jodi são mães e esposas, em diferentes momentos de vida e, como mulheres, também são cobradas para cumprir esses papéis. O longa indica que conciliar a rotina em família com um trabalho tão intenso é uma questão importante para as duas, mas os detalhes sobre esse aspecto ficam para a dedução do espectador.

    Sem dar tanta atenção às protagonistas, Ela Disse perde a oportunidade de se tornar um destaque entre outros filmes jornalísticos, mesmo sendo um dos poucos do gênero liderado por personagens femininas. Não é uma questão que deve atrapalhar, efetivamente, a experiência para a maioria do público, mas o aprofundamento na individualidade poderia ser um recurso valioso para dar um passo além da “profissão repórter" e trazer o peso e a responsabilidade da investigação e de seus desdobramentos para ainda mais perto da realidade.

    De forma geral, o longa é uma produção que conversa muito bem com seu próprio tempo, seja na atualização da forma como o jornalismo investigativo é retratado, seja na elaboração dos problemas que quer denunciar. O caso de Harvey Weinstein é brutal, mas Ela Disse deixa claro: Se isso acontece com estrelas de Hollywood, o que mais está acontecendo anonimamente?

     

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