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    Nóis por Nóis
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Nóis por Nóis

    Existência/resistência

    por João Vítor Figueira

    Ferrugem, grande vencedor do Festival de Gramado, pautou os dramas de uma juventude urbana de classe média e sua relação com a tecnologia através de um retrato sobre os efeitos destrutivos do bullying virtual e pornografia de vingança. Agora dividindo a direção com Jandir Santin, o cineasta Aly Muritiba volta a colocar adolescentes como protagonistas em uma trama em que a relação com a tecnologia também é crucial. Em Nóis por Nóis a ambientação passa de um colégio de elite para a periferia de Curitiba. Como mostra a primeira cena do filme, na qual uma criança brinca de apontar para direção do irmão um objeto no formato de uma arma, o contexto é um fator determinante nas relações apresentadas neste retrato do cotidiano periférico.

    Rodado na perigosa Vila Sabará, o filme acompanha o dia-a-dia de jovens como Café (Matheus Correa), um adolescente que organiza festas de hip hop e na quebrada e tenta se esquivar das arbitrariedades de traficantes de drogas e da polícia. Acostumado a ver seus amigos serem enquadrados pela PM de forma abusiva, o jovem usa a câmera do celular, uma arma "mais poderosa do que um oitão", como ele mesmo diz, para registrar eventuais excessos das forças do Estado. Na aguardada noite do baile realizado por Café, um crime choca a vizinhança e obriga os jovens Mari (Ma Ry), namorada de Café, Japa (Matheus Moura) e Gui (Maicon Douglas) a agir, mesmo que isso coloque suas vidas em risco.

    O trabalho de direção de Muritiba e Santin é o mais naturalista possível, proposta que se desdobra ao longo do filme em muitos aspectos. Os diálogos tem bastante despojamento, o trabalho de câmera sem tripé traz uma fluidez importante para trama ao mesmo tempo em que os diretores sabem construir um espaço introspectivo para os dilemas internos dos personagens. Esteticamente, entretanto, pesa contra que as cenas noturnas sejam recorrentemente tão escuras. Se a intenção era criar uma atmosfera de incertezas, em muitas cenas noturnas o que prevalece é a dificuldade de visualizar o que há em ação.

    O uso dos chamados "atores naturais" no elenco é fundamental para transmitir a organicidade que Nóis por Nóis evoca em sua narrativa. Mesmo que nem todos sejam capazes de imprimir a densidade emocional que algumas das cenas demandam, a maior parte dá conta do recado minimamente bem. Um dos principais destaques do elenco é Ma Ry, rapper na vida real que interpreta uma rara mulher no circuito de batalhas de rap.

    Entre os múltiplos temas que o filme se propõe a cobrir além da questão da brutalidade policial estão a gravidez na adolescência, com uma instigante ênfase na falta de responsabilidade masculina, a falta de oportunidades e um senso de urgência diante do mundo que os cerca. Há uma interessante relação entre o medo e a vontade de fazer alguma coisa para mudar aquele cenário. Nóis por Nóis sabe muito bem como exemplificar o que os jovens têm a perder se estiverem dispostos a enfrentar as arbitrariedades que sofrem. Em função disso, o desfecho catártico, acaba soando contraditório, uma vez que desloca a trama do bom realismo para uma situação pouco crível. A ideia de triunfo é válida, mas a montagem com cenas reais de protestos no "posfácio" do filme com alusões às jornadas de Junho de 2013 faz menos jus aos dramas do filme do que a forma vagarosa como o roteiro, anteriormente, desenvolveu aqueles personagens.

    Apesar da ressalva, Nóis por Nóis é um filme muito hábil em retratar como se dá a relação entre resistência e existência nas periferias brasileiras.

    Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.

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