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    Em Chamas
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Em Chamas

    Ensaio de um crime

    por Bruno Carmelo

    O espectador pode levar um bom tempo para compreender onde a história de Burning pretende chegar. O roteiro dedica uma hora de duração (de 2h30 no total) apenas à apresentação dos personagens: Jong-soo (Yoo Ah-In), um entregador pobre e solitário, Hae-mi (Jeon Jong-Seo), a vizinha de infância que o encontra por acaso na rua, muitos anos depois, e Ben (Steven Yeun), colega coreano encontrado por ela numa viagem à África. Presenciamos a lenta aproximação entre os três, num momento em que o filme não apresenta nenhum conflito para além da sugestão de um triângulo amoroso.

    Então, numa conversa banal, um deles confessa um pequeno prazer criminoso. Nada muito grave, provavelmente, mas ainda assim um crime, de natureza imotivada. A confissão é recebida com surpresa, e gera um efeito de mistério: por que este ato específico? Por que a periodicidade escolhida para os atos (uma vez a cada dois meses)? Qual será o próximo alvo? Num roteiro tradicional, a história correria para chegar logo a este momento fundamental. Mas o diretor e roteirista Lee Chang-dong, partindo de um conto de Haruki Murakami, toma o tempo de criar um universo no qual os atos seriam plausíveis.

    Assim, compreendemos a proximidade dos moradores com a Coreia do Norte, a crise econômica na Coreia do Sul, as decisões ameaçadoras de Donald Trump transmitidas na televisão. Entendemos a dificuldade financeira dos personagens – dois deles pobres, e o outro, riquíssimo, o que leva a uma tensão imediata dentro do trio – o distanciamento dos pais, a sensação de abandono. A amizade se constrói numa mistura de ciúme, inveja e carinho verdadeiro um pelo outro. Jong-soo, Hae-mi e Ben possuem uma construção emocional riquíssima. Por isso, quando a paranoia se instaura entre eles, não temos a sensação de uma obra maniqueísta: o criminoso não é um monstro, ele não foge, e sempre acolhe os amigos com um sorriso no rosto.

    O fator mais excepcional de Burning se encontra na capacidade de sugerir, cena após cena, que algo gravíssimo aconteceu no passado, ou está prestes a acontecer a qualquer momento. O espectador é convidado a fazer suas apostas, mesmo sem ter provas concretas. Afinal, o responsável afirma ter cometido vários crimes, mas não temos evidências. Essa faísca, no entanto, serve para desencadear outras: quando Hae-mi some da narrativa por um tempo, podemos rapidamente deduzir o culpado, quando encontramos maquiagem feminina na casa de um homem que vive sozinho, fazemos outras deduções. O roteiro convida o espectador a acusar sem certeza, tornando explícita a engrenagem da paranoia. Talvez pessoas estejam em risco. Talvez tudo não passe de uma mentira.

    O suspense asfixiante é construído de modo magistral por Lee Chang-dong. Os longos planos-sequência, com luz natural e câmera na mão, constroem uma bem-vinda aparência de realismo, que serve a tornar as cenas de sexo e de tensão ainda mais fortes. Em momentos muito específicos, uma trilha sonora perturbadora embala a narrativa. Longas cenas de dança de Hae-mi seminua, ou de troca de olhares entre os dois rapazes durante uma festa, contribuem à construção do desejo. Talvez a multiplicação de atos violentos não ocorra para impedir o infrator de agir, e sim aplacar o desejo sexual que nasce nos personagens quando estão uns com os outros. O fogo do título funciona muito bem para sugerir ao mesmo tempo o perigo e a libido, ou as pulsões de vida e de morte numa única imagem.

    Os manuais de roteiro costumam dizer que a melhor conclusão é aquela que soa inesperada quando aparece mas, ainda assim, passa a impressão de ser a única solução possível para o conflito. Este é exatamente o caso de Burning: em meio ao impasse, é difícil imaginar como esta história vai se fechar. Mas o cineasta cria uma cena final espetacular, catártica e, ao mesmo tempo, inevitável. A imagem é belíssima por sua estética e sua perversão, ou seja, pela combinação entre a estranheza e a aparência de naturalidade.

    Talvez desde Dogville, de Lars von Trier, o espectador não era convidado de maneira tão incisiva a questionar sua solidariedade com a vingança do protagonista. Até onde vai nossa empatia por um assassino? O fato de ter sofrido justifica a crueldade da revanche? É legítimo cometer um crime para prevenir crimes maiores? A história se encerra com pontos de interrogação importantes. Esta obra magnífica não deve sair da cabeça do espectador tão cedo.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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    Comentários

    • Luansenor
      Esse filme é pra quem gosta de filmes longos e degusta cada ato gente! mesmo que seja previsível alguma cena etc... 0 Defeitos amei .
    • Clarissa T.
      Ótima crítica!! Realmente eu me vi envolta com mtos dos questionamentos e reflexões citados!! Mais um gol do cinema coreano!! Palmas!
    • Canal Papo do Porco
      Icônico filme multifacetado e com infinitas camadas polissêmicas. Parabéns por mais essa ótima crítica, Bruno. Curioso que no ano seguinte, outro representante coreano, também abordando o tema das desigualdades por lá, conquistou o ocidente e até seu prêmio maior.Voltando ao Burning, destaco a metáfora do conflito entre os diferentes famintos (creio que autoral do Lee), a metáfora existencial da pantomina cítrica (já existente no Murakami), e a temática do ódio incontido (presente em Faulkner).Como Nietzsche ao ler um clássico, esse filme é para ser degustado vestido a rigor, e a antológica cena ao pôr do sol deveria ser assistida de pé, como em reverência a um hino, o que não deixa de ser a trilha que Malle eternizou, e que aqui serve como mais uma referência ao texto de Murakami e para dar partida ao clima que segue em direção ao cadafalso final.Sétima arte da melhor qualidade, para ver e rever. Fico imaginando quando teremos um ministro da cultura como esse ...
    • Naiana Garrafa Lima
      Um filme não é só a resolução. ele tem começo, meio e fim e tudo no meio disso. Musica, fotografia, diálogos, expectativa, metáforas, conclusões e etc. Enfim... Esse filmes é sensacional pra quem gosta de filme, o que me parece nao ser o seu caso.
    • Anne Moreira Natura
      Eu devia ter lido as críticas antes de assistir, assim não teria perdido 2:30h da minha vida assistindo a um filme previsível desse. Esperei até o final para ver se eu estava errada e o psicopata q não chora não tinha queimado a garota viva, mas SQN, ele a queimou viva mesmo, assim como eve ter feito com muitas outras, conforme sugestões durante o desenrolar a história. Mas tudo isso dava pra ter mostrado em menos de DUAS HORAS E MEIA de filme. Demorado, previsivel, se arrastou tanto q até eu fiquei cansada só de assistir. Sorry! Perde e muito feio para PARASITE, que ganhou o Oscar neste ano de 2020.
    • klaus
      Nota 3.Não precisava de 1 hora pra apresentar os personagens. Quase desisti. Depois de 1 hora que o filme engrena. Tem muito spoiler nessa crítica. Se liga Adorocinema!
    • Li M
      Assisti ontem e nem dormi.Acordamos elocubrando sobre o filme, meu marido e eu. Excepcional!
    • Li M
      Mas que tipo de gente lê a crítica antes de assistir o filme, genth!?
    • Joan Vitor
      Quem lê crítica antes de assistir o filme tem que tomar spoiler mesmo.
    • Laurent Rezende
      Delícia de Spoilers!CUIDADO GENTE, escritor completamente sem noção.Custa nada deixar pelo menos um aviso no começo da matéria.
    • Milena Ferreira dos Santos
      Adoro spoilers
    • João Víctor Garrido
      Cara, a crítica tá muito boa, mas cheia de spoilers! Ainda bem que não li nada antes de assistir ao filme.
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