O luxo e o lixo de mãos dadas
por Aline PereiraVencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2022, Triangle of Sadness surpreendeu em várias frentes: dos recursos visuais escatológicos que fariam inveja às cenas perturbadoras de Crimes of the Future, também presente na competição, à empolgação que gerou nas salas de cinema. Com uma crítica direta ao ponto e cheia de ironias à alta sociedade, o longa do cineasta sueco Ruben Östlund (que agora é bicampeão em Cannes) aponta o óbvio, mas faz isso com tanto carisma que causa impacto e se divide com precisão entre entretenimento e repulsa.
Triangle of Sadness começa quando Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean), um casal de modelos, é convidado para um cruzeiro de luxo, a bordo de um iate repleto de bilionários - é como se os personagens mais detestáveis de Succession e de The White Lotus se reunissem no mesmo lugar. Mas quando o barco naufraga, uma inversão de hierarquia acontece: nenhum dos passageiros têm ideia de como sobreviver por conta própria e a única pessoa que sabe como cuidar de si mesma é uma das funcionárias do cruzeiro. O filme, então, se debruça sobre essa virada de poder nas relações e na nova ordem que se estabelece a partir daí.
Do luxo ao lixo: Triangle of Sadness choca com humanidade
Assim que dá ao espectador um vislumbre de uma vida bilionária inacessível para quase todos - dos costumes peculiares aos pequenos e luxuosos pratos de comida, a trama dá a volta e arranca essa máscara de aparências com brutalidade. Em um dos vários percalços caóticos do iate, os passageiros são forçados a confrontar a própria humanidade da forma mais crua possível - e quando as condições são extremas, não existe poder capaz de nos blindar de nossa própria natureza.
A camareira não é ingênua, tem plena consciência do valor da sua mão-de-obra e não hesita em encontrar maneiras de reverter a situação a seu favor. Interpretada brilhantemente pela atriz filipina Dolly de Leon, Abigail representa não só a classe trabalhadora, mas também ilustra a posição feminina no meio profissional. Tendo uma mulher na liderança, os homens são submetidos a um sexismo que nunca haviam chegado nem perto de presenciar e não têm ideia de como reagir, presos a situações em que se veem forçados a dizer “sim”. Aqui, Triangle também aposta na satisfação da revanche.
O mundo dos “quase ricos”
Yaya e Carl, o casal de modelos, são um show à parte e a dupla de atores têm a dinâmica que dá alma ao filme: eles não estão nem perto de ser parte do universo dos bilionários, mas a beleza padrão garante a eles um lugar de destaque na sociedade. Os dois protagonizam a cena de abertura em que Carl reclama de a namorada nunca dividir a conta no restaurante, fazendo um discurso batido e superficial (e hilário) sobre igualdade e empoderamento. A questão é que a reflexão dele para por aí e Carl não faz ideia dos outros tantos fatores que significariam, de verdade, a equidade que ele acha que está resumida uma conta de restaurante.
Enquanto isso, Yaya, além de modelo, é influenciadora digital, obcecada em fotografar e postar todos os momentos - incluindo pratos de comida que ela não come. E aqui, Carl é a pessoa que vai apontar a superficialidade de tudo isso, enquanto se aproveita do luxo no cruzeiro que Yaya ganhou justamente por ser influenciadora. Uma dinâmica afiada que leva a vários outros conflitos entre dois e não exige que tomemos o lado de ninguém.