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    Cachorros
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Cachorros

    A ditadura presa na garganta

    por Bruno Carmelo

    Durante a maior parte deste drama chileno, Mariana (Antonia Zegers) parece a coadjuvante de sua própria história. Ela vive cercada de homens que lhe dizem o que fazer: o marido (Rafael Spregelburd) a força a seguir um tratamento hormonal para engravidar, o pai, um rico empresário (Alejandro Sieveking) a obriga a assinar documentos sem ler, o professor de equitação, e também antigo militar (Alfredo Castro), força Mariana a andar de cavalo, embora tenha machucado a perna num acidente. Ela reclama, às vezes faz birra, em outros momentos, apenas ri. Mas depois, faz o que lhe mandam.

    A postura da personagem em relação aos homens diz muito sobre seu ponto de vista em relação à História do país. A herdeira já ouviu falar no possível envolvimento do pai na ditadura militar; ela escuta diariamente insinuações de que o professor de equitação seja um coronel assassino, mas prefere fechar os olhos a esses fatos. A mistura de ignorância e alienação na burguesia chilena constitui o tema central de Cachorros. Mariana não é uma mulher pouco inteligente, nem propriamente cínica: ela filtra da realidade aquilo que a interessa, permanecendo na confortável bolha de submissão aos homens e privilégios financeiros.

    A personagem se tornaria antipática nas mãos de muitas atrizes, porém Antonia Zegers é uma intérprete excepcional. Ela faz de Mariana uma figura imprevisível, ora sedutora, ora infantilizada; em determinados momentos agressiva, em outros, passiva até demais. A protagonista flutua de acordo com as circunstâncias: ela é o que os outros fazem dela. Ao seu lado estão diversos homens corruptos, mas travestidos da aparência de “homens de bem” tão comum aos tempos de hoje: eles sorriem, demonstram carinho por seus próximos, trazem desculpas apropriadas a seus atos passados. Alguns mataram porque “seguiram ordens”, outros apenas emprestaram a sua fortuna aos militares porque é isso que se fazia na época. “A culpa não é minha, é do sistema”, insistem todos. E o mecanismo continua.

    O roteiro é muito bem-sucedido na primeira metade, quando emprega uma estrutura próxima à do thriller: várias informações faltam ao espectador, o espectro da convivência com possíveis torturadores conduz a um intrigante jogo de adivinhações. Enquanto isso, o widescreen reforça o isolamento de Mariana nos casarões chiques, as luzes frias sublinham o ambiente inóspito. Em especial, os diálogos transmitem confrontos complexos com naturalidade, graças ao talento de Zegers e Alfredo Castro, capazes de imprimir cacoetes da linguagem oral a frases que poderiam soar escritas em excesso. Sentimos o peso asfixiante de segredos não revelados, histórias que não podem ser ditas, frases que se evita durante reuniões para manter o decoro. Cachorros se constrói como um baile de máscaras prestes a caírem.

    A segunda metade, infelizmente, perde um pouco de sua força. Algumas falam soam didáticas ao se referirem à ditadura de Pinochet (“Nesse país, desapareceram milhares de pessoas, sabia?”), algumas simbologias são usadas em excesso (o belo quadro que serve de cartaz, os próprios cachorros), e a aguardada catarse nunca chega. A diretora Marcela Said pretende falar de uma época sangrenta pelas bordas, através de sugestões. O grito fica preso na garganta, já que a menção à ferida aberta do Chile adota o ponto de vista dos poderosos, e não das vítimas. Ao invés de um expurgo, de um ataque frontal a culpados e carrascos de outros tempos, temos metáforas mais ou menos evidentes – a bela cena final –, muito bem filmadas e atuadas. Said não se mostra particularmente incisiva no trato político, mas sabe trabalhar insinuações e ambientação com talento.

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