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    Amanda
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Amanda

    A perda e o recomeço

    por Bruno Carmelo

    É curioso como este drama consegue parece ao mesmo tempo bastante atual por seus debates de sociedade e voluntariamente datado em suas escolhas cinematográficas. Por um lado, ele apresenta famílias recompostas, uma mãe solteira (Ophélia Kolb) que busca um namorado pelo Facebook e um irmão (Vincent Lacoste) que vive de pequenos bicos por Paris. A capital francesa é vista longe do luxo turístico, mas também distante da representação das classes imigrantes. Estamos numa classe média sem muitas perspectivas de melhora social, que tampouco enfrenta grandes problemas financeiros. O tema dos ataques terroristas na cidade soa urgente e pertinente aos dias de hoje, especialmente desde os atentados no jornal Charlie Hebdo.

    No entanto, a estética não prepara o espectador para a tragédia que virá. O diretor Mikhaël Hers opta por imagens que parecem saídas diretamente de um filme dos anos 1970. Trabalhando com a textura da película bastante granulada, ele satura as cores em nível próximo do Technicolor. A imagem é reduzida a um formato mais quadrado, com os corpos posicionados no centro do enquadramento, da maneira mais clássica possível. Quando duas pessoas conversam, elas são dispostas rigorosamente nos terços do quadro. O ar retrô da produção se combina com os figurinos, que se passariam facilmente por trajes de décadas atrás, além dos móveis e acessórios antigos nas casas.

    Neste encontro de épocas, o atentado terrorista é retratado de maneira interessantíssima por romper com as regras do gênero. Nada de clima de suspense em preparação à tragédia, nada de ocultá-la através de sugestões. Hers revela um plano único, frontal e sangrento, com os cadáveres dispostos no chão. É verossímil que David seja pego de surpresa junto do espectador, porque acontecimentos como este constituem um choque inimaginável. O melodrama inerente às ações policiais, aos enterros e velórios é convenientemente suprimido. Ficamos com a explosão de uma imagem rápida e imóvel, como uma fotografia. Depois, cada um pode imaginar por conta própria os arranjos indispensáveis à morte. O cineasta conquista um atípico e bem-vindo equilíbrio, sem evitar o tema nem explorá-lo por sua sentimentalidade.

    O uso dosado da linguagem cinematográfica separa este projeto de tantas outras representações de tragédias. Pelas linhas gerais do roteiro, Amanda ofereceria o material perfeito para as típicas histórias de superação, nas quais um homem irresponsável aprende a se tornar um sujeito amoroso depois que cuida de uma criança pequena. Ora, David jamais se transforma no melhor pai do mundo para Amanda, que tampouco corresponde à garotinha frágil. A dor da pequena se embala num misto de incompreensão e abandono canalizados em pequenos gestos, a exemplo da belíssima cena final. A atriz mirim Isaure Multrier é muito bem dirigida, de modo a fazer o mínimo necessário em termos de dramaticidade, deixando os olhos atentos transparecerem a confusão interna.

    O drama se encerra no encontro improvável entre classicismo e contemporaneidade. Demonstrando profundo cuidado com os personagens, o diretor consegue transmitir a complexidade de sentimentos após uma tragédia, assim como a ternura que nasce, nos momentos de necessidade, entre pessoas que pouco se conhecem – a nova namorada Léna (Stacy Martin), a mãe distante (Greta Scacchi), a tia (Marianne Basler). Hers aborda o período de luto como uma espécie de nó na garganta, que impede tanto a plena aceitação da catástrofe quanto a expiação do trauma.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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