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    A Tabacaria
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    A Tabacaria

    O pesadelo recorrente do fascismo

    por Sarah Lyra

    A primeira questão a se abordar sobre A Tabacaria é sua estonteante reconstituição da Viena de 1937. O design de produção é quase um personagem por si só, tamanha é sua expressividade em cena, com suas variações de cinza e marrom aliadas a uma paleta de cores quentes e pouco vibrantes. O trabalho dos profissionais envolvidos na concepção estética do longa dirigido por Nikolaus Leytner também se destaca nos pesadelos do protagonista Franz (Simon Morzé), eficientes em ilustrar o estado de espírito do garoto, que passa por um processo de coming-of-age (a chegada da maturidade) ao ser obrigado a abandonar Attersee, sua comunidade no interior da Áustria, para trabalhar na cidade.  

    É interessante observar como a característica onírica de algumas cenas está presente desde o início da projeção, mas sofre alterações à medida que a trama se desenvolve. Ao sermos apresentados a Franz, percebemos que o garoto de 17 anos passa a maior parte de seu tempo imerso em água, se imaginando como uma figura marinha de um universo lúdico. Quando interage com pessoas reais, seus frequentes devaneios o caracterizam como o herói de situações em que se encontra encurralado, como aquelas em que é confrontado por um homem enciumado e todo o segmento envolvendo sua paixão platônica, Anezka (Emma Drogunova). A partir do encontro com Otto Trsnjek (Johannes Krisch), no entanto, um veterano que perdeu uma das pernas na Primeira Guerra Mundial e agora é dono da tabacaria onde o protagonista trabalha, Franz é confrontado com um senso de realidade muito mais duro do que sua imaginação poderia prever. 

    A trajetória do garoto é o ponto alto do roteiro, principalmente por conta da atuação de Morzé, que transita com maturidade entre a figura do garoto gentil, que pouco sabe sobre o mundo, e o adulto que precisa tomar decisões difíceis às vésperas da ocupação de Viena pelos nazistas. Em um primeiro momento, o jovem escuta com atenção os discursos de Otto, que, apesar do cinismo aparente, é um grande defensor de que não haja diferenciação entre os clientes, sejam eles comunistas e judeus ou não. É também divertido ver como Franz se torna um excelente aprendiz de Otto, reproduzindo não apenas suas práticas sociais como seus variados discursos — às vezes palavra por palavra —, geralmente com um ensinamento moral ao fim. 

    Igualmente válido é o relacionamento estabelecido entre Franz e Sigmund Freud (Bruno Ganz), um cliente frequente da tabacaria. É claro que toda a situação se torna muito mais interessante por conta do peso do nome de Freud, e é inovador retratá-lo como coadjuvante e homem comum, onde suas conquistas científicas não são o foco da narrativa. O professor se torna uma espécie de conselheiro amoroso de Franz, se mostrando tão intrigado pelo mundo feminino quanto um jovem vivendo o primeiro amor. A partir desse ponto, o roteiro peca ao gerar uma série de expectativas que nunca se concretizam. A Tabacaria dá a impressão de querer aprofundar a relação, de maneira que se torne significativa para os dois, principalmente quando Freud demonstra interesse nos sonhos recorrentes do garoto. Ao pedir que Franz documente sua experiência onírica, fica implícito que os sonhos terão alguma importância na trama em algum momento, por isso, é decepcionante ver que o roteiro escolhe não retomar a questão posteriormente. Por mais que Freud seja retratado como o vizinho do prédio ao lado, soa como um desperdício não abordar, mesmo que discretamente, o conhecimento do professor sobre o subconsciente, principalmente depois de o garoto demonstrar um claro interesse no trabalho do pesquisador.

    A Tabacaria também estabelece sua força em uma eficiente oscilação entre os acontecimentos cotidianos da vida dos personagens e os políticos, marcados pela ascensão fascista. São sutis os momentos em que Leytner sugere o perigo iminente dos seguidores de Hitler, como na cena em que um homem entra na tabacaria, também ponto de venda de jornais e materiais de papelaria, pedindo a nova edição do National-Zeitung, jornal alemão de extrema-direita. Por conta de uma eficiente capacidade de costura das subtramas de Viena, fica particularmente evidente a falta de um desenvolvimento maior do arco da mãe de Franz, com quem ele troca cartas frequentemente. É essa troca que também escancara algumas das angústias e fragilidades dos dois personagens. A diferença é que, no caso do protagonista, somos oferecidos outros recursos (como os sonhos e a vida cotidiana na capital) para melhor compreendê-lo; no caso de Margarete (Regina Fritsch), são poucos os momentos destinados a abordar sua preocupação com as finanças e, principalmente, com o assédio sofrido pelo patrão, a ponto de inventar um namorado para impedir os avanços do dono do hotel.

    A Tabacaria chega ao fim em um ato final que se distancia do impacto dos seus antecessores. As histórias têm uma conclusão muito aquém do que é sugerido ao longo da projeção, principalmente no que diz respeito ao romance de Franz e Anezka, a quem o filme dedicada muito tempo de tela e pouco aprofundamento. Ainda assim, Leytner acerta ao delimitar o recorte temporal e histórico, propondo um novo olhar sobre uma história já conhecida de intolerância e antissemitismo, mas que sempre pode ser recontada.   

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    Comentários

    • Maércio D
      O filme deixou algumas pontas soltas. Pecou por ser superficial nas relações entre os personagens (Otto e Franz; Franz e Freud; Franz e Margarete), não demonstrou as histórias dos personagens, nem como chegaram ao ponto da história. Porém, o que me deixou mais intrigado foi um certo fetiche que Franz tinha com animais mortos. Isso o filme não explica (esperei até o final para ver se Freud nós demonstrava se aquilo era alguma manifestação do subconsciente de Franz ou se era apenas sandice).
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