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    Memória em Verde e Rosa
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Memória em Verde e Rosa

    A voz do morro

    por Taiani Mendes

    A Mangueira é muito grande/ dá galhos pra todo lado/ e os frutos que ela dá/ todos são aproveitados. Aproveitados sim, mas reconhecidos, são? Você sabe quem é Tantinho? Padeirinho? Hélio Turco? Documentário de Pedro Von KrügerMemória em Verde e Rosa chega com a proposta de destacar personagens menos célebres da história da escola de samba mais famosa do Brasil – e “mais querida do planeta”, conforme anunciava o finado intérprete Luizito. Pelas vielas da comunidade que desemboca na quadra, o filme oferece uma aula de samba e história, em que amor pela agremiação e talento para composição andam juntos. Iniciado com a revelação, literal, de Cartola – autor da música que abre o texto, parceria com Ataliba -, Memória em Verde e Rosa não ignora os bambas clássicos e tampouco deixa de voltar àqueles contos de sempre sobre a fundação, o uso do couro de gato nos instrumentos da bateria, componentes costurando suas próprias fantasias, o surdo diferenciado e o velho desfile solto, sem pressão de membros da Harmonia. O foco, no entanto, está na intensa produção musical dos sambistas do morro, crias da favela que cresceram aprendendo com os mestres, compunham no intervalo do trabalho, têm músicas que muita gente canta, mas de certa forma permanecem condenados à sombra dos expoentes, lutando para manter viva uma tradição na iminência da morte: a lealdade ao pavilhão.

    Memória em Verde e Rosa pode ser descrito como um longa sobre música, carreiras, Mangueira e o poder da criação, mas seu tema fundamental é a apropriação. Do samba. Tantinho, o cicerone da narrativa, Padeirinho, Hélio, Marreta e outros, capturavam no “belo cenário criado pela natureza” a inspiração para suas canções, que contribuíram para a formação da aura de encantamento em torno da escola e consolidaram a poesia única como uma característica da agremiação. O tempo em que o samba pertencia aos sambistas, no entanto, já passou e hoje a Mangueira é uma marca valiosa acima de qualquer outra coisa. Tantinho, cumprimentado por todos nas andanças pela comunidade e aplaudido de pé em apresentações com a Velha Guarda, entra na quadra lotada como apenas mais um e caminha cabisbaixo, praticamente invisível, numa das sequências mais tocantes e significativas do filme.

    A tal memória verde e rosa é marcada por dicotomias. Morro e asfalto. Polícia e “vadios” – como os sambistas eram vistos e por isso presos. Comunidade e classe média. Profissão e paixão. Passado e presente. O saudosismo é explícito, tanto nos discursos, quanto no tratamento das imagens de crianças e barracos que ilustram alguns depoimentos. Com movimentos de câmera que cortejam os entrevistados evocando o bailado de um mestre-sala, a direção de fotografia de Von Krüger não escapa muito do padrão dos documentários de personagens, mas ao menos exibe uma boa variedade de cenários, com destaque para o trecho em que Tantinho e Wilson Moreira se veem no cinema, jovenzinhos, no doc Partido Alto, de Leon Hirszman.

    Entre anedotas, personagens inacreditáveis - como Brôto, o matador de policiais que só se entregou depois de desfilar -, trilha sonora da melhor qualidade e paredes com a marca do tráfico de drogas, o documentário decepciona no finalzinho ao apelar para a recorrente crítica a "tudo isso que está aí hoje", muito comum quando o assunto é samba, e tem algumas arestas na montagem, sobretudo por se estender além do necessário em alguns pontos.

    Como perder algo que nunca foi seu? Como um samba triste, Memória em Verde e Rosa é um passeio conduzido por um homem cujo coração é da Mangueira e hoje convive com a dor da conscientização de que a Mangueira não é dele. Tantinho, no entanto, demonstra sua desilusão em silêncio, deixando para Nelson Sargento as grandes frases contra a perda de terreno para as classes média e alta. Além dos ricos, são vilões os escritórios de compositores, que entram para ganhar em todas as disputas, transformando em negócio o que outrora era puramente amor e arte. Soa ingênuo e é, mas tão genuíno quanto o amor incondicional dos compositores de raiz, que seguem desfilando apesar da soberania das alegorias gigantes, dos sambas genéricos, das alas comerciais, do surdo um abafado e da cadência acelerada.

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