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    Voando Alto
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Voando Alto

    Elogio da diferença

    por Bruno Carmelo

    Em pleno século XXI, uma premissa como a de Voando Alto, sobre uma andorinha criada por uma família de gaivotas, tentando se inserir num meio diferente, não produz qualquer surpresa. Afinal, Missão Cegonha (2017), Mogli, o Menino Lobo (2016) e Os Boxtrolls (2014), entre outros, também utilizam a metáfora sobre a diferença entre raças ou espécies no mundo animal para representar a dificuldade do pertencimento e a importância de se unir às diferenças. No entanto, o cinema e a sociedade precisaram evoluir muito para que esta mensagem se tornasse comum. Até pouco tempo atrás, o elemento dissonante era tolerado caso se adequasse às normas da maioria; agora, desenha-se o respeito pela diferença enquanto tal, enxergando-a enquanto força de cada indivíduo, e não sua falha.

    Mesmo assim, a animação dos diretores Andrea BlockChristian Haas parece se abrir com uma história mais conservadora a princípio, quando o pobre Manou precisa constantemente provar seus talentos para ser aceito entre as gaivotas. A cada passo em falso, no entanto, seu pertencimento é questionado. Hoje, pode-se atribuir à andorinha uma representação de qualquer indivíduo marginalizado em seu grupo social ou prejudicado por ser quem é – o gay, o negro, o deficiente, o estrangeiro etc. Aos poucos, o roteiro combina tanto as mensagens universais de amor ao próximo, valores familiares, coragem e superação de obstáculos, quanto as virtudes mais contemporâneas da aceitação de si mesmo e o orgulho de sua característica distintiva. Entre ficar com as gaivotas que o criaram ou viver com as andorinhas às quais se assemelha biologicamente, o filme desenha uma terceira alternativa de permeabilidade entre grupos sociais distintos.

    Esta mensagem não é proferida com qualquer forma de sutileza: o projeto faz questão de ser claríssimo, explicitando sua conclusão com frases de efeito e solucionando cada problema lançado na cena subsequente, para não criar dúvidas no público infantil. Assim, se Manou é questionado sobre sua capacidade de voar, uma abrupta competição é introduzida na cena seguinte para o protagonista ser testado; se ele é interrogado pela capacidade de proteger os ovos, logo ganha uma oportunidade de se vingar dos inimigos ratos. Muitas animações contemporâneas dos principais estúdios se aventuram por meandros psicológicos complexos, porém Voando Alto pertence a um formato mais clássico, no qual a narrativa privilegia a função de parábola à ambição enquanto obra de arte.

    Pelo menos, diante das qualidades técnicas simples e eficazes, o filme permite romper alguns estereótipos gastos: ao invés de os pássaros fêmeas serem representados por uma construção idêntica à dos machos com o acréscimo de cílios longos ou cores rosadas, desta vez são os machos que ganham sobrancelhas grossas, em acréscimo ao modelo feminino. Trata-se de um detalhe, porém digno de nota após tantas representações da feminilidade enquanto decalque ou acréscimo de uma baliza original masculina. Além disso, a animação reserva esforços consideráveis para retratar as forças da natureza, incluindo um belo trabalho de iluminação durante uma tempestade. Percebe-se nestas cenas a preocupação notável em inserir os animais na mesma ordem natural dos fenômenos climáticos – e da qual os seres humanos estão convenientemente ausentes. Para completar a ambição dos cineastas, a música é menos pop do que a média das produções infantis, apostando em longas composições de jazz e músicas com uma pluralidade de instrumentos rara em filmes do gênero.

    Estas escolhas de linguagem servem a uma narrativa um tanto atrapalhada, que se permite ignorar passagens importantes (o “feitiço” do pai após um trauma passado), deturpar outras sem maior explicação (a necessidade de aves passarem por uma “escola de voo”), enquanto combina aspectos biologicamente precisos (a característica de voo específica de andorinhas e gaivotas, as formas dos bicos e patas) com outros puramente fantasiosos (a capacidade inata de tocarem um instrumento musical). Ressalvas à parte, em sua flagrante ingenuidade, o filme coloca os valores da diferença acima daqueles do amor romântico ou das obrigações familiares e de origem, o que constitui um discurso digno de nota.

    Mais interessante ainda: trata-se de uma ousadia que se tornou comum, domesticou-se, e hoje passa por um posicionamento comum de aceitação da alteridade. Este seria, afinal, o objetivo de qualquer luta: atingir o caráter natural de sua representação, sem causar espanto nem gerar revolta. O discurso social poderia ir muito mais longe, embutindo uma série de nuances (psicológicas, sociais, cinematográficas) em sua mensagem – vide as obras da Laika e Pixar, por exemplo. No entanto, trata-se de um bom caminho, que se consolida a ponto de não mais voltar atrás. É interessante o cinema chegar ao ponto em que este bom nível constitui a mínima sofisticação que se espera de uma animação infantil.

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